Das muitas histórias ouvidas na infância, lembro de uma que tem o prodigioso poder de sempre atualizar-se pela qualidade intrínseca de sua grata mensagem: - fala de amor, simplicidade, liberdade e “gratidão”.
Conta-se que Andrócles, um modestíssimo escravo grego, perseguido pelas legiões romanas, refugiou-se nas cavernas. Lá dentro, um grande leão urrava de dor porque um incômodo espinho cravara-se em uma de suas patas. Andrócles fugia dos romanos, caverna a dentro, dividindo seu espaço com o leão ferido.
De que lado estava o perigo maior??
Do lado de fora, perderia sua liberdade, certamente. Do lado de dentro, corria o risco de perder a vida. Vida ou liberdade?...?
Obedecendo o imperativo de seu sutil entendimento humano, que jamais despoja-se da sagração da dignidade, resolveu perder a vida pois, - “vida sem liberdade, não vale nada...”
Aproximou-se da fera – até porque não restava outra alternativa – e vencendo o medo, pronto para ser, sumariamente, devorado, desentranhou o formidável espinho que castigava o animal.
Milagre dos milagres – o leão não só não o atacou mas, como num “gesto” de gratidão, lambeu, carinhosamente, a mão de seu benfeitor. Os tempos passaram e Andrócles, finalmente, foi capturado. Levado para Roma para engrossar a multidão dos desvalidos, cumpriu tarefas de humilhação até ser jogado no meio da arena, ao sabor dos leões famintos e ferozes. Tudo isso para gozo e festa de um povo insatisfeito que vivia de favor, com pão e circo.
Quando Andrócles preparou-se para morrer, precocemente, pela segunda vez, eis que outro milagre aparece, desafiando a ordem.
Sob a gritaria histérica da platéia, um dos leões avança, decidido, na direção do grego. Fome e ferocidade era o que se lia nos olhos da fera... O espetáculo valeria a entrada!
Surpreendentemente o leão aninha-se como gato manso e lambe, com suavidade, os pés do escravo. Posta-se em sua guarda para defendê-lo contra tudo e contra todos. O povo quer sangue. O Imperador quer decisão. Aplausos de um lado – vaias de outro – Roma precisa sobrepujar. Um batalhão bem armado entra em cena para resolver a questão. Com ferros e força mata o leão e o escravo.
Pela primeira vez o povo não aplaudiu o ato. E assim, começa a cair o Império que julgava ter se erigido para todo o sempre.
Modernamente, essa história não tem leões mas tem outras feras igualmente famintas e perigosas povoando as cavernas insalubres da periferia de pessoas miserentas, seres incompreendidos, cidadãos marginalizados, mães solteiras, pais alcoolizados, humanos brutalizados – verdadeiros leões transpassados por penosos espinhos sociais...
De certa forma, estamos todos no meio dessas arenas condenatórias à espera do enfrentamento, para riso e delírio dos governos incompetentes.
Quantos de nós podem esperar a “gratidão” e a fidelidade desses “leões de Andrócles”...??
Quem anda por aí, no ermo das tocas urbanas, sob a índole da caridade e da liberdade, arrancando espinhos sociais, tem direito de alimentar alguma esperança de, um dia, poder sobreviver para, enfim, resgatar a dignidade humanitária para si ou para a posteridade.
Quem não anda – que ponha mais uma tranca na porta para resguardar mais uma culpa na consciência...