quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Conterrâneo Ilustre

Na tarde suja de uma segunda-feira qualquer, Geraldo entro no ônibus com mágoas no coração. No bolso, apenas uns trocados para o primeiro lanche.
Embarcava sem destino em busca de melhor sorte na vida. No fundo insalubre de seus vinte anos, tentava agasalhar pensamentos positivos mas a tristeza, agarrada em sua alma, como a propaganda eleitoral colada naquele poste em frente a modesta rodoviária, lhe embrulhava o estômago e turvava seus olhos de menino. Infelizmente, sua terra – sua amada terrinha – não lhe dera chance de uma ocupação decente. Bem que tentou, dia após dia, merecer um naco de dignidade entre os seus. Por muito tempo, andou de lá pra cá oferecendo seus péssimos mas ninguém se comoveu. Uns, porque não queriam; outros porque não podiam.
Agora, botava o pé no mundo, pendurando, mentalmente, pedacinhos de esperança na vasta cerca que ladeava a sinuosa estrada, vorazmente engolida pelo velho e barulhento ônibus. Na memória, um imenso rio de desgosto castigava as barrancas de seu entendimento e apenas um barquinho areeiro resistia ao turbilhão de suas magoadas lembranças. Que barco era esse? Quem segurava seu leme?... Quem era aquele navegador tonto, que mal podia consigo mesmo, que lhe entregara, de bom grado,um punhadinho de moedas misturadas com dinheiro miúdo amassado,molhado e mal cheiroso?...? Se não fosse isso, não teria para a passagem nem para o primeiro lanche. Nem ao menos “obrigado” tinha dito ao anônimo pródigo que lhe dera, de graça, todo o resultado, (quem sabe(?)) de um mês de serviço. Quem era?
Deus e o mundo saberiam que essa generosidade, um dia, seria recompensada. Saberiam?...?
O tempo passou e, um dia, a pequena cidade foi surpreendida no noticiário da TV. Repórteres de todos os jornais corriam, sôfregos, atrás de um suspiro do próspero homem de negócios. Todos queriam uma palavrinha desse midas milagroso que transformava em ouro tudo que tocasse e que dizia coisas, sabiamente cabais, para o progresso do país.
-Mulher, olha o Geraldo na televisão.
-O que que o “magrão” está fazendo aí?...
-Não sei não, mas está todo mundo correndo atrás dele...
-Será que ele roubou ou seqüestrou?...
-Que nada, mulher, o “dentuço” agora é um homem rico – é autoridade – deu um dinheiro grosso pras crianças da rua e disse que o Brasil não tem conserto se não transformar tributos em salários.
-Que conversa é essa, meu velho?
-Presta a atenção – ouve o homem...
-Quem diria... (?)
-É isso aí, minha velha – o “qualheira”, virou o jogo...
-Será que ele tirou na loteria ou...(?)
-Ou o quê, Rosaura?...
-Não sei não – mas, se arranjar, tão depressa...!
-Depressa nada. Quanto tempo faz que o Geraldo foi embora?
-Eu nem sabia que o “caniço” tinha sumido daqui...
No dia seguinte o comentário geral era o noticiário da TV. A cidadezinha estava do avesso com a fama do conterrâneo. As rádios e os jornais locais logo estamparam a boa nova para orgulho geral da “terra dos Coqueirais”.
E não faltou gente para afirmar, de pés juntos, que conhecia, intimamente o Dr. Geraldo e contar vivas passagens dessa feliz e privilegiada convivência. Uma senhora da zona norte apareceu com uma mecha de cabelo, jurando ser de Geraldo. Um político apresentou as tiras de uma sandália havaiana, afirmando categoricamente, ter pertencido ao ilustre conterrâneo. Muitos contavam isto e aquilo a respeito do famoso filho pródigo. O prefeito fez discurso e assinou decreto em cima do banco da praça onde Geraldo tinha passado a última noite na terra. A Câmara convocou sessão extraordinária para homenagear o emérito patrício. Por paus e pedras, de repente, “Coqueiralzinho” entrava no mapa porque o grande Dr. Geraldo fazia questão de dizer, aos quatro ventos, sortidos de parabólicas, que tinha nascido lá. E mais: - dizia que, brevemente, voltaria à sua terra natal para cumprir uma grande missão de justiça e reconhecimento.
-Justiça? Reconhecimento?..
-Eu acho que ele vem é pra se vingar...
-Vira essa boca pra lá. Nós não fizemos nada...!
-Por isso mesmo. – Sentenciava, filosoficamente, Romildo,segurando com dois dedos, um generoso copo de pinga.
Muito antes do que se esperava, Geraldo chegou á cidade, provocando grande tumulto. O comércio fechou as portas, a prefeitura abriu o Salão Nobre, a Câmara entrou em reunião permanente e o povo acotovelava-se no calçadão. Uma banda improvisada, secundada por um coral de crianças, perfilou-se para dar boas vindas ao grande Dr. Geraldo. Na praça, o sereno “filho da terra” acenou, carinhosamente, para todos. Quando lhe deram a palavra, falou pouco mas falou bem. Disse da imensa satisfação de voltar ao seu chão, anunciou expressivas doações a entidades benemerentes, agradeceu a calorosa recepção e pediu que se acusasse o benfeitor que, há vinte anos, tinha lhe dado dinheiro para a passagem e o primeiro lanche da viagem.
Silêncio geral. Insistiu na solicitação:
- Por favor – que se apresente, aquele que, despreendidamente, me entregou um punhado de dinheiro permitindo que eu embarcasse no ônibus em busca da prosperidade que hoje ostento.
Nada.
-Por favor - que se mostre e se identifique o homem a quem devo quase tudo. Tenho aqui um cheque de cem mil para agradecer a esse amigo que abriu caminho para minha felicidade.
Quando falou em dinheiro, a confusão foi total. A Brigada,até então extasiada com o pronunciamento do “notícia nacional”, precisou agir para recompor ordem no ambiente. Logo surgiram dez, vinte, quiçá trinta que afirmavam terem ajudado Geraldo naquela hora difícil. Geraldo não se lembrava do rosto, mas tinha remota memória da roupa do benfeitor. Lembrava, também, do lugar onde o milagre tinha acontecido. Aos poucos, foi esgotando o enorme contingente dos que afirmavam, por Deus, terem ajudado naquele momento de extrema dificuldade.
Tantos foram os questionamentos seletivos em busca da verdade que sobraram apenas dois. E todos os dois preenchiam a longínqua e turvada memória de Geraldo em busca do generoso “irmão”.
-Qual de vocês me deu aqueles trocados, na tarde suja daquela segunda-feira de agosto?
-Eu...
-Eu...!
-Mas, foi um só...
-Fui eu!
-Fui eu...
-Então, rasgarei este cheque ao meio para recompensar, agradecer e reconhecer aquele gesto tão importante em minha vida. Darei um pedaço a cada um.
-Não rasgue o cheque...!
-Não?
-Pode dar ao companheiro aqui – disse o mais seboso da dupla.
-Ah! Então foste tu?...
-Sim...
-Pois tome o cheque e muito – muito obrigado!...
Leovegildo subiu ao palco, pegou o cheque, tirou do bolso do prefeito a caneta, escreveu atrás do cheque e entregou-o de volta ao grande Dr. Geraldo.
“Um abraço, amigo – não me deve nada!... Foi de coração...”
Disse isso e sumiu na multidão.
Geraldo, atônito, buscou, em vão, seu benfeitor.
Frustrado, olhou para todos os lados e não mais o encontrou. Olhou o povo, olhou o banco e o campanário: - Viu apenas uma pomba rola bicando os próprios piolhos, sob os olhos da lua, das estrelas e do infinito...

O Borzeguim

É noite fechada em Grotinhas do Socorro e as sombras do caminho dão frio na espinha. Bonifácio caminha aflito evitando os fantasmas do sossego, desviando os abismos do transcurso, pulando os desvãos da fantasia.
Já quase em casa abandonou-se aos perigos do descuido para lamber-se – enxugando sua própria adrenalina. “Basta – eu quero paz”... dizia para si, tentando restaurar sua consciência de tranqüilidade e integridade. Mais dois passos e estaria atrás de seu muro de proteção inviolável. Nesse exato momento – justo aí – cai, como um tronco morto dessas árvores que a vida desdenhou, um sujeito informe, vomitando ameaças, com um revólver na mão:
-É um assalto – fica quietinho. Vai passando a bolsa, a roupa, a jóia e o tênis...
-Não estou de tênis...
-Ué, por quê?? Todo o mundo usa tênis...
-Mas eu não gosto de tênis.
-Então, passa isso aí... O que é isso aí??...
-É um borzeguim...
-Que bicho é isso?...?
-É uma botina.
-O que é botina?...?
-É um sapato meia bota, que antigamente, a gente usava e...
-Pode parar. Não me enrola...
-Não. Claro que não. Só estava respondendo...
-Deixa pra lá. Me entrega a bolsa e a jóia.
-Não uso bolsa.
-Então me dá a carteira e o relógio.
-É do Paraguai...
-A carteira?
-Não, o relógio...
-Não quero. Passa a grana – fica com o relógio.
-Toma...
-Só isso?...?
-Espera aí – acho que tenho mais duas moedas neste outro bolso.
-Devagar, meu chapa – estou de olho. Qualquer movimento em falso e te apago.
-Calma, amigo – não vou reagir...
-Não sou teu amigo. Te acomoda. Vai passando o anel e a aliança.
-Não uso...
-Por quê?...?
-Ora, porque não sou casado e o anel de formatura já deixei lá no prego da Caixa Econômica...
-Que miséria! Chega! Tu tá me conversando...
-Juro que não – pode me revistar.
-Deixa pra lá. Me dá o que tu tem.
-Tenho este isqueiro.
-Eu não fumo...
-É folheado – coisa boa.
-Não quero – é muquirana.
-Leva o celular...
-Me dá – isso vale.
-É de cartão...
-Esquece – fica com ele.
-O que posso fazer por ti?...
-Nada – acho que vou te apagar e pronto.
-E o que ganhas com isso?...?
-Tudo e nada. Mas ninguém mais vai perder tempo contigo. Nada pra mim e tudo pela classe...
-Tu é quem sabe...
-Sei sim – vais morrer...
-Então manda bala – meus credores vão adorar...
-Vou te apagar mesmo, mas antes tu vai ter que me explicar o que é esse tal de “borzeguim”(?)...
-Tudo bem. Mas enquanto eu te explico vamos ali na esquina beber umas cervejas.
-Qual é, meu chapa? Tu acha que eu sou trouxa?
Tu vai me entregar...
-Nada disso. Até nem tenho para quem te entregar... Vamos tomar umas e outras – numa boa – só para descontrair...
-Ah, agora te peguei na mentira. Como vais pagar as “cevas” sem grana?...?
-Eu boto na conta. Fica frio – deixa comigo...
-Então vamos...
E tomaram meia dúzia de geladas enquanto um tentava explicar e o outro tentava entender o que era ou deixava de ser um “borzeguim”.
Quando pediram a conta, depois da décima, para remetê-la ao solene cabide do botequim, exclamaram solidariamente:
-Isto é um assalto!...!
O dono do bar, simpático e sempre muito solícito, explicou que a elevação dos preços estava por conta e risco do último pacote do governo. A suba da gasolina, a queda da bolsa,o FMI, a reforma fiscal, o Mercosul, os juros internacionais e a vó do Badanha encareceram a cerveja...
-Mas isso é um assalto...! – gritaram e espernearam, como bons cidadãos.
-Estamos todos no mesmo barco e vai morrer na praia...
E saíram abraçados, muito amigos, meio tontos mas suficientemente lúcidos para compreenderem que revólver não é vantagem quando a caneta faz pontaria...
Noite à dentro cantaram com entusiasmo e inocência:
-É o pacote...
-É o borzeguim...
-Esse pacote é um borzeguim!
-É o decote...
-É o arlequim...
-É um assalto...
-Vem do Planalto...!
-O que vai ser de mim?...?
E cantaram e rimaram madrugada à fora, assistidos por uma lua cheia e muitas barrigas vazias.
A lua, um dia, mudará. E as barrigas?...?

Bom Negócio

Lafaiete Barroso acabara de preencher sua ficha no Hotel Central.
Vinha de muito longe e pretendia permanecer algum tempo na cidade. No espaço que perguntava profissão ou atividade escreveu simplesmente corretor.
Subiu ao quarto, esparramou suas coisas e mais tarde desceu para jantar.
Muito simpático e extrovertido foi logo entabulando uma conversa cordial com o porteiro e com o garçom. Quando lhe deram oportunidade, perguntou, de cara, quem era quem no lugar (?).
Porteiro e garçom divergiram um pouco nas primeiras informações mas, por fim foram unânimes em afirmar que o homem mais rico e importante da paróquia era o Coronel Fulgêncio, que morava bem ali do outro lado da praça. Lafaiete gravou o nome conversou mais um pouco e depois pediu licença para recolher-se.
No outro dia, depois do café, pegou sua pasta e foi ter com o Cel. Fulgêncio.
Na porta da mansão foi atendido por uma preta, muito preta vestindo um avental branco, muito branco.
“Bom dia. O coronel Fulgêncio está?
“O coroné tá drumindo...”
“Pois então entregue meu cartão e diga que volto mais tarde.”
“Sim sinhô.”
Além do nome e da profissão o cartão de Lafaiete tinha impressa uma intrigante e insinuante afirmação: “ Terras do Brasil virgem – compra hoje, economiza amanhã e lucra sempre.”
Lá pelas onze horas Lafaiete voltou a casa do Coronel. Foi mandado passar para a sala principal. Comodamente sentado em uma poltrona como se fora um trono lá estava o Coronel Fulgêncio segurando com as duas mãos uma bengala. Não levantou-se para o forasteiro, apenas fez um pequeno gesto indicando para que tomasse acento na cadeira próxima. Barroso apresentou-se, disse de onde e a que viera. O Coronel ouviu calado e sério as explicações do corretor:
“São terras a espera de um homem de visão como o senhor”- concluiu o vendedor.
“E quando custam?” – perguntou o coronel, com autoridade.
“Por enquanto não lhe custam nada.”
“Mas como isso?”.
“São terras devolutas – sem dono. Preciosamente perdidas nesse imenso País. Eu só quero seu assentimento para poder negocia-las”.
“Mas como vou lhe dar permissão pra vender o que não me pertence?”
“Se o senhor me disser sim já são suas. Eu apenas preciso do seu nome para encaminhar esse negócio”.
“Mas eu não estou lhe entendendo”.
“É simples. O senhor só me diz que quer as terras e eu as negocio para o senhor. Se por ventura eu não conseguir passa-las adiante no espaço de um ano o senhor fica com elas por apenas 20 contos de réis”.
O preço era dado de barato.
“Mas e a escritura?”.
“O senhor assina nesta simples autorização de venda e eu deixo como garantia o meu relógio”.
O coronel examinou o relógio – era um Pathek Fhilip de ouro que valia no mínimo cinco vezes o preço das terras.
“E quem me garante que esse relógio é seu?”.
“Aqui está o certificado de propriedade e eu estou assinando um termo de penhora a seu favor”.
“Então se no espaço de um ano o senhor não vender as terras que eu não comprei,eu pago 20 contos de réis e fico com o seu relógio (??)”
“Isso mesmo. O senhor tem raciocínio muito rápido e não esta de costas para um bom negócio”.
O coronel, que era bastante vaidoso, gostou do elogio e apreciou mais ainda ganhar um belo relógio (de forma legal) por meia dúzia de patacas.
“Está feito!”
Assinaram o que tinha que ser assinado. Lafaiete entregou o Pathek com a documentação e saiu prometendo voltar breve para resgatar seu compromisso.
Cel. Fulgêncio estava eufórico com a grande cartada.
Menos de três meses depois o corretor voltou com um volumoso pacote de dinheiro.
“Coronel – isto é seu. É o produto da venda das suas terras”.
“Mas o que o senhor está me dizendo??..”
“Isso mesmo. Promessa é divida ...”- e entregou ao Cel. um maço de contos de réis que daria para comprar uma boa invernada de bois. Dinheiro para um, relógio para o outro estava terminada a estranha transação entre o corretor Lafaiete e o respeitado Cel. Fulgêncio. Despedidas e gentilezas. Na saída o coronel ainda lembrou:
“Quando surgir um bom negócio como esse não deixe de me procurar”...
Passou um ano e novamente Lafaiete se hospedou no Hotel Central. Desta vez não procurou o Coronel. Procurou amigos e conhecidos deste. Oferecia terrenos numa praia distante. Mais dia menos dia o coronel ficou sabendo da presença de Lafaiete na cidade.
Mandou um próprio chamá-lo com urgência a sua presença. Lá chagando ouviu um severo sermão:
“Mas e o senhor chega na cidade e não me procura??”
“Coronel, eu não lhe procurei porque desta vez não tenho um bom negócio”.
“Mas sou eu que decido o que é bom e o que não é....” – disse o coronel.
“É verdade - o senhor tem toda razão. Mas desta vez estou vendendo apenas alguns terrenos na Praia do Murundum, ali na enseada das baleias...”
“Isso me interessa”.
“Não é bom negócio Coronel”.
“Mas eu quero comprar”.
“O senhor manda e não pede”.
E assim o ambicioso Coronel Fulgêncio arrematou todo o lote de terrenos na Praia do Murundum. E pagou á vista. O preço equivalia quatro vezes o Pathek Philip. Feita a escritura, no mesmo ato autorizou Lafaiete a buscar negócio para os terrenos. Ora, se tinha ganho tanto naquela outra transação, por que não haveria de ganhar o dobro nesta??
Passaram-se os anos e Lafaiete não mais voltou. Um enviado especial, um dia, foi verificar de perto os tais terrenos da praia. Descobriu que Murundum era uma praia provavelmente da lua ou de algum outro lugar perdido na imensidão do Universo... E Lafaiete em algum hotel deste imenso Brasil, dormia de consciência tranqüila e dinheiro no bolso.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Risco de Morte

Acabara de comprar a melhor cobertura da Silva Sampaio. Móveis, utensílios e comodidades viriam logo, logo, a peso de dólares, pela influência gorda de um amigo prático, estrategicamente estacionado no Ministério da Fazenda. O carro, cheio de firuletes, não faltava falar... As roupas, caras, exclusivas e feias, vestiam bem o ego e mal tapavam a mancha congênita que insistia no braço esquerdo. No pulso, um relógio condensado em ouro, marcava a hora exata de examinar o iate depois de breve telefonema ao corretor da Bolsa:
-Alô, Jorge, aqui é o Midas Ferreira.
-Olá. Como passa o Senhor?
-Tudo bem, tudo bem. Olha, meu tempo é curto, portanto, presta a atenção.
-Pois não, doutor, pois não.
-Vende aquele lote da semana passada e compra algum outro que te der na telha.
-Pode deixar, doutor. Tudo bem. Providenciarei imediatamente.
-Tchau.
-Passe bem, doutor.
O telefonema tinha lhe dado uma pequena fome. Com quem almoçaria naquela quarta-feira de sombra e vento?? Zélia, a fiel secretária, por certo já tinha providenciado tudo. Tomara não fosse aquele banqueiro suíço, branco, mole e chato que, em língua portuguesa só aprendeu a dizer “obrigado”... Não, Zélia era mais esperta do que se pensava. E o jantar, com quem seria? À noite não poderia esquecer o compromisso com Vanessa que pedia, encarecidamente, a oportunidade de agradecer-lhe o “vison” recebido no Natal. E o esboço da conferência em São Francisco será que já estava devidamente composto e corrigido? Infelizmente o Cairo teria que esperar mais seis meses por sua presença para a reinauguração das novas luminárias das Pirâmides...
-“O Mundo merece a Paz”... – tinha dúvidas se esse seria o fim ou o começo de seu discurso na centésima trigésima Conferência das Nações, em março próximo. Na hora saberia como resolver. Se não soubesse, seus diletos assessores dariam a última palavra. Ah, Monte Carlo: Chatíssima seria a escala na Etiópia para abraçar aquelas esquálidas crianças e assinar um cheque na frente das câmeras. Será que o Freitas fechou aquele negócio das minas na Bolívia? E as madeiras da Amazônia? E o petróleo do Paraguai? Problemas e mais problemas... Assim acabaria ficando irremediavelmente doente... Onde penduraria o quadro de Milton? Será que poderia ser ao lado do deVan Gogh? E os tapetes persas? A raridade faz a grande valia desse artesanato. Mais de setenta poderiam comprometer essa constante. Seria preciso vender alguns. Trocar, seria mais digno. Trocar por esmeraldas. Mineiras, quem sabe (?). Acontecesse o que acontecesse, teria que comparecer ao coquetel que o Presidente vai oferecer ao Mundo Livre, para consolidar o capitalismo. E o Bill? O que faria com o Bill? Seria prático e objetivo: daria rosas a Nancy e um par de botas a Bob. A questão da África do Sul preocupava, mas meia palavra sua seria suficiente, para resolver as coisas. Pior era o impasse entre as tribos afegãs. Será que teria de usar napalm para acalmar os ânimos?? Qual o número da conta bancária dos hemofílicos da Irlanda? “Se não me engano, hoje é o aniversário do meu alfaiate”. “Qual o nome do chefe do meu Projeto de Mísseis”?
-“O Irã me preocupa. O que farei para baixar a inflação brasileira?”
Ah, finalmente em casa – lar, doce lar.
-Mãos ao alto, isto é um assalto.
-Tudo bem, o que queres?
-O teu prestígio – a tua imortalidade.
-Isso eu não te dou, por dinheiro nenhum.
-Então vou te matar.
-Pode matar.
E o bandido apertou o gatilho duas vezes mas só conseguiu ouvir o sinal metálico do controle remoto trocando de canal. Pra sempre. Eternamente... Clic!

O Deficiente

Há pouco Rodrigues me telefonou, preocupado, dizendo que está ficando cego e surdo. Indaguei se tinha sido algum acidente, ou alguma, doença estranha e repentina??. Me disse que não sabe ao certo, mas o fato é que, de repente, “deixou de ouvir as batidas do relógio da Igreja; o apito do guarda-noturno; o canto do quero-quero da vizinha; o cachorro fantasma, latindo no terreno baldio; o cochicho dos namorados; a algazarra do feirante; a carroça do leiteiro; o alarde do sineiro; a cantoria do borracho; a gargalhada, a risada, o pouco juízo ecoando dentro da noite de verão. Não escuta mais a briga das lavadeiras, a sirene do colégio, a gritaria da gurizada,o salto do sapato, sério e firme, de dona Verônica, indo para a missa. Não ouve mais os passos perdidos do itinerante (ou será itinerrante?), não ouve o rádio da Isaura, nem o galo cantador, a corneta do soldado, o cavalo do tenente, a seresta, a festa, a boré da praça,o piano do conservatório, a tosse do vivente, o suspiro pelo ausente”...
Dei uma bruta risada e me preparei para explicar que “isso não era coisa grave”. E quando fiz aquela pausa própria dos que “sabem” e tem muito a dizer, Rodrigues atalhou, desatinado:
... “Estou cego, meu amigo: estou cego!...” – “Olha, ainda ontem dei uma volta por aí e não vi o Alfredo sentado no Café da Esquina, não enxerguei o pincenê do Silva, nem a bengala do Rômulo. Não vi a banda, nem a menina dos olhos e muito menos a rapariga requebrando. Não consegui ver o Cruzeiro do Sul que certamente foi sular outros pagos. Não vi o gato da Dulcinéia, nem o relógio no bolso, nem o padre na batina, nem a gravata de tope na vitrine. E onde está a manivela? E as luvas, o banco da praça, o palanque do político, o chapéu do Bonifácio, a mala do camelô, o tacho da cigana, a sorte e a esperança, a ilharga, o sobrolho, o pigarro? O que foi feito do tornozelo da Praxedes?”
Fiquei surpreso, parado, sem saber o que dizer. Mas Rodrigues que ainda não tinha ficado mudo, continuou:
... “Onde está a fumaça do trem? Cadê a poeira do Saci, o violão do Lima, o xadrez da Farmácia, a esmola do Lucrécio, a brilhantina do Thomaz, o trejeito do Jardélio, a homeopatia do Lifonso, o topete do Licurgo, o reclame do xarope, e a sacada da Vivinha”??...
Rodrigues estava muito excitado. Era preciso acalmá-lo. Mas ele não me deixava falar:
... “viste(?)... estou irremediavelmente surdo e cego – sou um deficiente – e agora??...”
-“Para aí, Rodrigues. Me escuta – presta a atenção: isso que está acontecendo contigo não tem nada de anormal – é passageiro, tudo perfeitamente explicável...”
Rodrigues interrompeu brusco para perguntar se eu estava vendo e ouvindo tudo aquilo que ele não mais via nem ouvia?
Só aí me dei conta que eu também tinha ficado meio surdo e meio cego...
Dissimulei como pude e tentei desenrolar a meada pela outra ponta.
-“Escuta, Rodrigues, não te deixa impressionar. Estás apenas um pouco confuso”.
Mas meu preocupado amigo, interrompeu, novamente aos gritos:
-“Alô! Quem fala?... alô?... Não estou ouvindo. Alô...?”
Resolvi desligar. Achei melhor uma conversa ao pé da orelha.
Decidi ir até a casa do Rodrigues. Quando abri a porta e olhei a noite, vi uma estrela cadente. Aproveitei e fiz, como se fazia antigamente, três pedidos, e, um deles era, naturalmente, por Rodrigues. Agora fico pensando: - “...era estrela cadente ou seria um satélite artificial, cansado da rotina??...”
O tempo dirá. Satélites não atendem pedidos... ou será que atendem??...

Adivinha...

Tanisso e Tanessa, dois exemplares operários da Fábrica Brasil, batendo aquele papo esperto, na ida para o trabalho.
-Adivinha o que eu tenho aqui?
-Um elefante com bolinhas roxas.
-Não – é sério – adivinha (?)
-Ora, como é que eu vou saber?? Dá uma dica.
-É verde e...
-Uma nota de cem dólares (?)
-Nada disso. Pensa um pouco. É verde, amarelo e lustroso.
-Já sei. É um sapo, desses bem grandes, da lagoa.
-E eu tenho estômago para segurar sapos? Já basta os que a gente engole por aí. Te concentra – Diz o que é.
-Verde, amarelo e lustroso. Taí, matei. É o Hulk brasileiro saindo de um baile de carnaval (??)...
-Assim não dá. Estás levando na gozação. Eu tenho aqui uma das coisas mais importantes de todos os tempos.
-Só pode ser a máquina (legal) de imprimir dólares ou então é o recibo quitado da dívida externa (?).
-Contigo não dá para conversar. Mas, vendo bem, não erraste muito longe. Com isto que tenho nas mãos, se bem usado,dá para fazer dinheiro e mandar para os escambaus a tal da dívida externa. Agora está fácil. Adivinha.
-Peguei – é o canhão do Rambo?...
-Eu desisto. Não és um patriota. Não tens o chamado “interesse cívico”. Só pensas em bobagens.
-Me dá mais uma chance. Vai lá – me dá mais umas dicas.
-Tudo bem. Vamos lá: - tudo pela Pátria. Com isto que tenho aqui atrás, é possível transformar fracos em fortes e fortes em fracos. Não vais me dizer, agora, que não sabes o que é??...
-Deixa ver... dá um tempinho; deixa eu pensar...
-Vai pensando – tens todo o tempo. Aliás, o tempo é a fornalha da consciência.
-O que? Uma fornalha??
-Nada, nada. Esquece. Eu estava apenas filosofando. Continua pensando na tua resposta.
-Fraco fica forte e forte fica fraco... (cabeleira do Sansão, licor de jurubeba, chá de sabugueiro, garota do fantástico, telesena, volante da loto, santinho de candidato político)... olha, tá difícil.
-Pensa. É a grande arma dos oprimidos.
-Então é a poção mágica do Asterix... (?)
-Deixa de brinquedo. O assunto é sério. Isto que eu tenho aqui significa a redenção dos trabalhadores...
-Já sei. É uma caderneta de poupança de Banco Suíço.
-Chega de besteira. Tá aqui, ó – os direitos inalienáveis do cidadão...
-O que é isso?? Um passaporte??...
-Este livrinho é a Constituição Brasileira. Olha bem. Segura com cuidado. Dá uma lida.
-Agora não dá – o apito já está chamando. Lê tu.
-Não – Lê tu – toma.
-Não posso, agora. Vai. Lê um trechinho pra nós...
-Não. Lê tu.
-Eu não – lê tu...
-Engraçado, comadre saracura, disse a coruja – eles vão empurrar um para o outro o tal livrinho, porque não sabem ler... eu acho!
-Será? Como a senhora é maldosa...
-Eu? – eu só observo e bico!
-Então bique...