terça-feira, 17 de maio de 2011

EM NOME...

Quem pensou que Dom Pedrito estivesse sozinha no mapa, enganou-se. De uns dez anos pra cá, a fúria emancipatória fez surgir uma série de novos  municípios Brasil a fora. Leio e constato a existência de uma cidadezinha gaúcha denominada Dom Pedrito de Alcântara, surgida, recentemente, nessa alucinada leva emancipatorréica... (essa palavra existe??) Deveria...!
E como se chamam os moradores desse  lugar? Seriam os “Dom Pedritenses” ou os “Alcantarenses”? Ou serão os Pedritanos ou Alcanterídios?...
Indagações à parte, vale a pena conferir a porção de novos e intrigantes nomes que povoam o novo Rio Grande. E todos elegerão prefeitos e vereadores no próximo três de outubro.
Gentílicos de todos os tamanhos e para todos os gostos, serão habilmente, descascados pelos políticos em seus acalorados discursos de “convence povo”.
Os antargortenses, os ipesianos, os passasetenses e os sagradanos familienses, das respectivas Anta Gorda, Ipê, Passa Sete e Sagrada Família, terão muito o que ouvir nesta eleição. E como responderão os eleitores de Chuvisca, Mato Leitão, Rolador, Relvado e Muitos Capões?... Quem nasce em Muitos Capões chama-se como ou o quê?... Caponada? Rebanho? Tropa? O certo é que tal dúvida não há de empanar o entusiasmo dessa boa gente na escolha de um prefeito pastor ou pastor prefeito...
Mas, tem mais – tem município chamado Alegria e outro chamado Sério. Tem um denominado Mormaço e outro denominado Boa Vista do Incra... E durma-se com um barulho desses...
Para não cometer injustiça não poderei omitir o Mato-Castelhano, o Novo Machado, o São José dos Ausentes e o escorreito e bem posto Benjamin Constant do Sul...
Em destaque vem o município de Tio Hugo. E como ficará o mundo se os “tio huguenses” fecharem questão?... Que questão...? Ora, a questão do tudo e do nada ou do pino da granada... Que diferença tal fará em Roma, Paris ou Badra...?
Queiramos ou não, esses são os meandros (brasileiros) da democracia de resultados. Que resultados? Para quem vai a vantagem? Na base da conta, tem soma, multiplicação e divisão armando a equação de uma  cidadania mínima sobre interesses máximos para uma  resultante prédica. E a subtração? Essa fica por conta dos tributos gerais e das falcatruas particulares... Se alguém chegasse, de surpresa, em nosso mundinho, perguntaria, atônito: - “Por que tantos nomes se o por quê é anônimo?
Se alguém se sentir incomodado com tanta perguntação, que vá morar em Quinze de Novembro – município próspero, altivo e valoroso. Se, ainda assim, não estiver satisfeito, que pule um número e vá buscar abrigo na “dezesseis de Novembro”, bela cidade, acima de qualquer suspeita histórica, política e... matemática!
Seja qual seja (ou for) o nome, estamos todos no mesmo barco e sob o capricho da onda – circunstância, que nos empurra para uma praia de iguais. Nessa enseada comum haveremos que armar as barracas das diferenças que, enfim, nos igualam ao nome da... em nome do... em nome de...!
Até quando? Por quê?...

UM POUCO

Do todo sempre resta um pouco e o pouco que resta bastaria para fazer grande o mundo e maior a humanidade. Senão vejamos.
Não é a enxada que verte poderes milagrosos ao agricultor e sim sua competência de produzir que o faz indispensável na difícil empreitada de prover. Não é o hino, nem a bandeira, que fazem a virtude do patriota e sim sua sincera vontade a favor das causas justas de sua Pátria, que gera a luminosa postura de legítima liderança e útil convivência.
Não é a forçosa circunstância coletiva que identifica e classifica o cidadão e sim a clarividência  de sua iniciativa de serviço ao próximo, que qualifica e justifica sua ação de ser, fazer e revolucionar.
Não é o lustro da batuta que faz brilhante o concerto e sim a alma e o enlevo do maestro e dos músicos que tornam imortal a melodia.
Não é a fria fórmula do medicamento que resgata a vida e reforça os contornos da existência e sim a humanitária dedicação do médico que sara as feridas, amaina o sofrimento e repõe o sol da saúde na cabeceira dos moribundos.
Não é a tosca ferramenta que ergue a obra e sim o esforçado trabalho do construtor que a faz real, sólida e permanente.
Não é a cartilha que gera a educação e sim a dedicada consciência do professor que promove o elucidamento.
Não é o breviário que encurta nosso caminho para Deus e sim a liderança do pastor e a força de nossa fé que fazem reais as sendas da caridade e verdadeiras as estradas da esperança.
Não é o pincel que dá beleza ao quadro e sim a emoção do pintor que a colore de vida e paixão.
Não é o brilhante e caro anel que ergue os castelos do amor e sim o sentimento arrebatado do amante que exige as fortalezas do afeto.
Não é o forno que faz o pão e sim o diletante trabalho do padeiro que regenera a essência de nosso provimento material.
Não é a métrica que faz a poesia e sim o ânimo libertário do poeta que rima ensejos com desejos.
Não é a barba que faz o sábio e sim sua justa razão, mesmo imberbe, que faz a certeza do caminho e o caminho da certeza!
Não é o nariz vermelho que faz a graça do palhaço e sim seu dedo mingo, cheio de magia e arte, que aponta para o reino do riso.
Não é o texto que cria e anima verdades no coração dos leitores e sim a própria inspiração das pessoas, que faz legível o escrito e válido seu sentimento.
Do todo, um pouco para que reste um tanto para não faltar um muito e não sobrar um quanto...
 Quando?... Onde? – Aqui! Hoje um pouco – cada dia um tanto!

A CRÍTICA

Das histórias de D. Pedrito antiga, gosto muito de uma que conta a passagem de dois compadres, que vinham pela estrada do Ponche Verde, lá pela década de 40, a bordo de um Modelo A, ou coisa que o valha. Lá pelas tantas, disse o que vinha de passageiro, para o que estava no volante:
-         Mas tchê, tu não consegues nem enxergar os buracos!
-         É, e tu enxergas porque não vens manejando!
Tirando o conteúdo anedótico do causo, cabe em qualquer e sob os mais diversos pretextos, uma ilação sobre o teor crítico do incidente.
Vejam que o motorista dava-se por satisfeito, a braços com tarefa tão complicada que era a de guiar. Ao passageiro sobrava tempo e atenção para observar os solavancos. A exaustiva e exclusivista incumbência da pilotagem era ação quase sobre-humana, que ocupava todos os sentidos e exigia heróica destreza. O outro, apenas um passageiro sofrendo, solidariamente, os incômodos percalços da estrada, adensados pela intrepidez do motorista, reclamava, em altos brados e alguns galos na testa, a direção perigosa.
A lição que fica e ficará é a de que a crítica sempre estará mais à mão de quem não tem as mãos ocupadas. E não há mérito nem demérito nisso. É um fato da vida, do mundo e das circunstâncias. E, observem, bem atual e sempre universal. Se transportarmos a história para nossa relação com o Poder Público, por exemplo, veremos que tudo se encaixa. Tantas e tantas vezes reclamamos do piloto dessa mau incauta chamada Administração, quando, na verdade, a máquina é ingovernável, numa estrada tão ruim. Sejamos, no mínimo, tolerantes ou atentos e ativos co-pilotos, ajudando na travessia, em nome da boa chegada e contra os maus torcicolos...

RECEITAS LUSITANAS

“Pão de hoje; carne de ontem
e vinho de outro verão, fazem o
homem são”.
        
         Meu avô, português, com quem convivi, fraternamente, até a penúltima dobra de minha adolescência, sempre cultivou respostas lúcidas para indagações febris. Como bons amigos, seguidamente trocávamos conversas úteis, francas e afetivas. Uma distância de quase sessenta anos no tempo cronológico, era quase insuficiente para criar diferenças ou levantar barreiras nesse relacionamento, que hoje invoco com tanta saudade.
         Falávamos de política, economia, religião, custo de vida, saúde, comidas, desmandos governamentais, progresso de Portugal, atraso do Brasil – filosofia teórica e prática – e coisas do dia a dia...
         Raramente falávamos de futebol! Tal rareza encontrou seu ponto extremo na Copa de 66, quando nossa Seleção perdeu, fragorosamente, para a equipe portuguesa. Evitamos o assunto para desviarmos prováveis incômodos e desconfianças. De carnaval, não falávamos, mas sempre coloquei ouvidos para apreciar, em silêncio, sua opinião, rigorosamente crítica, a respeito dessa festa, de muito gasto e pouco proveito.
Fundidas à imagem desse amigo, estão as tiradas, as observações, as críticas, as opiniões, os conselhos, as espontaneidades e as indefectíveis receitas, tão lusitanas na forma quanto humanas no conteúdo. Nascido na região de “Trás os Montes”, província de Mirandela, a um palmo da Espanha, aprendeu a fermentar a folclórica rivalidade com os fronteiriços. E para dizer sem rebate, sentenciava: - “Da Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos”. A quizila histórica era de fundo cultural ou circunstancial, certamente.
Mas tão antiga que não valia a pena saber a origem.
“Um bom genro – beije-se-lhe os pés”.
“Nada mais caro e perdulário do que o desnecessário”.
“Para um bom vento há sempre um mau tormento”.
Sabedoria fácil, direta, objetiva e ligeiramente ousada que me passava sem custos e condições. Certa vez, saímos pela cidade pesquisando preços de pedra de isqueiro. Se alguém se choca com a diminuta valência dessa missão, que não esqueça que toda a areia da praia é feita de grão em grão...
“Ora, não me venhas de borzeguim ao leito” – costumava dizer para neutralizar a chatice de certos assuntos ou atitudes que vêm à tona em hora imprópria.
Sentado de costas para o vazio, olho, com mansidão, as marcas que o tempo fez. Encontro nelas o contorno da promissão e vários riscos que a vida e a imensidão rascunham de graça ou por vocação.Olho o espaço e vejo todos. Olho o tempo e vejo tudo. Para que eu olhe e sempre veja, comerei o pão de hoje e a carne de ontem, regados pelo vinho do outro verão. Só assim poderei alimentar a esperança de quem, um dia, outros verão...

PENDENGAS

Carregando um pesado e incômodo gesso na perna direita, Josias resolveu cobrar do pedreiro a indenização pelo prejuízo. Acontece que o bom Josias quebrou a tíbia justamente no banheiro, ao escorregar no sabonete, em plena segunda-feira. O fato é que a saboneteira de seu Box, colocada de maneira displicente, facilitou a queda do sabonete que por sua vez patrocinou a escorregada, que então provocou a fratura.
Alguém já conferiu essas saboneteiras de parede colocadas dentro do compartimento do chuveiro? São um desastre. Sabonete usado ali não pára, nem que a vaca tussa.
E agora, o atento e querelante Josias, cobrava na Justiça a capenga conta de sua quebradura. E tinha boas chances de ganhar em todas as instâncias pois, para sorte da causa, juiz e promotor padeciam de mal semelhante, oriundo de conduta profissional culposa. Mas, afinal, onde estava o pedreiro facínora? Ninguém sabe, ninguém viu... Comentam que o pobre diabo morreu semana passada vítima de escorregão maior – simplesmente não conseguiu equilibrar-se no escasso fio de sua aposentadoria.
Ladislau quer processar o desenhista dos bancos do ônibus. Diz, e prova, que sua dolorosa escoliose provém da absoluta falta de ortopedia desse cômodo colocado, compulsoriamente, para uso e abuso de trabalhadores de baixa renda e altas obrigações como ele. Mas cadê o desenhista? Existe um desenhista? Quem saberá?
Pandolfo promete levar aos tribunais o fabricante da brilhantina. Diz e afirma que essa dita cuja alquimia é a grande responsável por sua formidável e brilhante calvície...
Careca de saber que sua gagueira vem do susto causado pelos noticiários sensacionalistas, Godofredo quer acionar a imprensa.
A unha encravada de Jasmim teve causa e origem no tosco e mal fabricado sapato da “Leva e Trás”.
Quem não sabe que as cáries de Jorginho foram provocadas pela ineficácia do dentifrício “Só Riso”?
E os pesadelos de Glorinha, quem não sabe que foram causados pela goma de mascar “Blou apel”?
Marianita quer seus direitos, ao perder o amor de Lindolfo por quilos a mais em razão daquele feijão abusado.
Quantos problemas... Quantas pendengas... O mundo só sabe brigar! Que útil seria se fôssemos mansos e compreensivos...
No tempo e na boa vontade, tudo se resolverá! Para que questionar? Sejamos pacientes. Seijammmoos paiccieentes. Oppa. O que há comm eesta makquina? Queero meeus dirreitos. Aos tribunais! Euu processo!

DEDAIS

Depois de várias tentativas, Rosália conseguira passar a linha pelo diminuto buraco de sua velha agulha. Olhos cansados, mão trêmula e luz velada, fazem penosa a tarefa costureira. Um cerzido aqui, um cosido ali, ia tecendo sua sovada solidão, atrás dos óculos turvos, do dedal amigo e das pantufas encardidas.
Gileu, o gato, agora pardo, gastava a rapa de sua sétima vida felina, sonhando com os ratos do porão. No fogão, ainda ardia o cerne daquele espinilho que Chico arrastara da tapera. Lá fora, a noite, qual manto surrado, furado de frias estrelas, caía serena sobre os ombros do pálido dia vencido. Dentro, a heróica Rosália ponteava sua treinada agulha, remendando os trapos da angústia, cosendo os andrajos do silêncio...
Agulha vai, agulha vem – quanto pensar para coser um bem!...
Maria perdeu seu filho. Que mais teria perdido Maria, se não tivesse filhos? Duas voltas de linha grossa nesse botão, para que não se despregue outra vez.
Pedro não achou sua lavra de ouro. Que ganharia Pedro, garimpando ouro, se a humanidade já se vendeu por esmeraldas? Um nó cego no cerzido para que não se rompa de novo.
Sem fé, o mundo está perdido. Sem mundo, o que seria da fé? Passa a agulha no pano grosso, com força, mas segura com o dedal pra não espetar o dedo.
Mais vale um pão na boca do que muitos na ilusão... A fome é um invento ou um descobrimento? Esta meia tem muito mais furos que tecido. Mais valerá comprar uma nova. Quanto custará? Nada menos que trinta e três remendos.
A amizade não tem limites. A inimizade também não. O colarinho não presta mais. Será preciso tirar o bolso para servir de gola. O que vale mais – o colarinho ou o bolso?...
Quem não come morre. Quem come também. Quem sacia a fome da morte? Quem?
Agulha vai, agulha vem – um dedal detém...
A felicidade está onde a pomos. Onde a pomos?
Onde está o carretel que estava aqui? Sai pra lá, Gileu!...
As linhas da mão mostram o futuro e as da testa o passado. Dizem que o destino é quem faz os traços da mão e é feito pelos da testa. Dizem...
Ih, escapou a linha, outra vez. A saudade é a filha mais velha da loucura. Ou será o contrário?...
E a paixão, o que é? E a velhice o que é?
Coser é preciso – perguntar não é.
Costurar e costurar sem parar – a barra da calça vadia, o botão do doutor, o carpim do padre, o véu da noiva, a farda do sargento, a asa do querubim, a saia da solteirona, a camisa do detento, a bandeira do Divino, o lenço do chorão, o manto da viúva, a máscara do palhaço, o cobertor do vivente, o terno do ausente, as pregas da emoção, botões da razão – retalhos do coração.
Agulha vai e vem – um dedal detém...
Quem costura minh`alma? Quem cerze meu coração?
Quem remenda meu bem e meu mal – sem usar dedal?...
Esta colcha está comida de traças mas aquele lençol esfarrapou-se de amor!...
Quem arranca minha dor? Quem conserta minha solidão?
Quero linha branca. E preta também. Onde estão os botões? Cadê o dedal? Quantos camelos, pelo buraco, passarão?
Coser é preciso – perguntar não é...
Sai pra lá, Gileu... Sai!

SE NÃO ME FALHA...

Quem já não teve tropeços de memória? Sim, aquele “branco”, justo quando se quer lembrar o nome de um amigo, um número de telefone, o compromisso inadiável, a conta para pagar, o aniversário, o horário, a fisionomia, a chave, documentos, momentos, a dentadura, o olho de vidro, a aliança, o colete, o verbete, o guarda-chuva, o endereço, o recado, o pecado, a história... Ah, essa memória que nos tortura!
Quem já não teve aqueles famosos lapsos inoportunos, no discurso de improviso, no encontro casual, na prova valendo nota, no cadastro valendo nada, no telefonema valendo tudo? Quem?
Segundo estudos de técnicos americanos, só o bicho homem tem a inigualável faculdade de esquecer ou de não lembrar. Alguém, por acaso, conhece vaca esquecida? Jacaré esquece? Saracura tem a capacidade de não lembrar? Os animais não esquecem, daí porque a justa comparação quando alguém se salienta na arte de tudo lembrar – esse tem memória de elefante...! Vá que seja!
Na média, somos todos um alegre bando de esquecidos.
Análise mais acurada do assunto exigiria alguns reparos sempre úteis para o perfeito entendimento da espécie humana. Na verdade, existem os desmemoriados e os distraídos. À primeira vista parecem vinho da mesma pipa mas, justiça seja feita, são bem diversos na soma total das parcelas.
O esquecido é isso por isso mesmo, e o distraído é o que geralmente lembra errado.
O primeiro, se não lembra, não diz. O segundo, porque nunca lembra, sempre diz as coisas mais disparatadas possíveis. Diz e faz...!
Certa vez, armou-se discussão em torno de um caso bem estranho: Um sujeito que foi ao baile e esqueceu a mulher em casa. Esquecido ou distraído?
“Pura distração”, dizia um grupo, “esquecimento puro e simples”, dizia outro. “Esse é um caso de legítima desmemória”, argumentava um dos debatedores. “O distraído autêntico jamais cometeria essa gafe, iria ao baile, só que com a mulher errada...!”
Debates à parte, todos sabemos o drama que é esquecermos o que deve ser lembrado.
Para tudo há remédio, dizem estudiosos do tema. Há maneiras e artifícios para baixar, consideravelmente, a estatística do esquecimento. Aconselham os práticos que se anote tudo em uma agenda. Dia, hora, o quê, quem, onde, por quê, tudo. Não tem erro desde que não se esqueça a agenda. Não é raro toparmos, diariamente, com uma legião de fantasmas, com olhar perdido, à caça desesperada de suas próprias agendas.
E hoje temos as moderníssimas agendas eletrônicas, verdadeiros prodígios da tecnologia, tão difíceis de manusear, tão fáceis de perder. Há quem diga ter visto uma novinha em folha, dormindo alegremente na geladeira, bem ali na prateleira das saladas. Pior se estivesse no forno...
Não é consolo, mas, vendo bem, todos, um dia, já mastigamos esse contratempo. Todos! Já os esotéricos recomendam recurso bem mais resolutivo para a questão. Sugerem o denominado artifício do “terceiro elemento”. O adequado “adorno referencial”, para onde convergiria a energia emanada do esforço de lembrar, faria a grande diferença na hora H do “tilt” da memória. Uma fita no dedo, uma melancia no pescoço, uma pedra no bolso, uma corrente de cachorro na cintura, uma nota de cem dólares colada na testa, uma jibóia enrolada no braço, um tamanco holandês no pé esquerdo, um lambari dentro da pasta, uma fotografia da Tiazinha no pára-brisa e outra do Ministro da Fazenda na carteira, são maneiras infalíveis de sempre lembrar e nunca esquecer.
Lembrar o quê, mesmo?...
Ah, som! Lembrar de não esquecer...

ORDEM E MÉTODO

Tenho um amigo realmente ordeiro. Na casa tudo está em seu devido lugar. Os livros na prateleira, as camisas no camiseiro, a manteiga na geladeira, a tinta no tinteiro, o dinheiro na carteira, o cigarro no cinzeiro, as galinhas no galinheiro, os filhos no travesseiro e a esposa... (onde está a esposa?) – a esposa, sua copeira predileta, está na soleira, de braços abertos e beijoqueira, ajudando a passar a limpo, com amor e graça, mais um dia de santa ordem e abençoado método.
Tenho outro que não reza pela mesma cartilha. Na casa desse as coisas estão em algum lugar. Há livros na geladeira, a manteiga esteve no camiseiro e também na carteira, tem tinta no travesseiro, um cigarro achou algum cinzeiro e na soleira tem dinheiro. Os filhos estão na estrada, as galinhas no vizinho e a mulher na prateleira. A ordem dos fatores pode não ser exatamente essa, mas isso pouco importa, pois nada altera o resultado. Resultado? – Meus dois amigos são felizes, cada um à sua maneira. E o pior é que, seguidamente, convivem, em terreno neutro, sem qualquer arranhão.
Dizem os entendidos, que ordem e método configuram uma disposição especial do espírito tendente à perfeição, à transcendência, ao nirvana, etc...
Paulo Mendes Campos contou o caso de um indivíduo que fazia tudo, banho (que banho!...), vestia-se, tomava café, lia jornal, despedia-se dos serviçais e rumava para o batente. Certa feita, foi cruelmente atropelado pelo bonde na frente de casa. Ele agia e se comportava com ordem mas o bonde, infelizmente, não...
O certo é que ordem e método são, segundo os técnicos, meios, armas ou ferramentas reconhecidamente eficazes para a consecução e o alcance de fins positivos compensadores. Dizem até que, na verdade, os meios condicionam os fins. Será?
Há quem diga, no entanto, que a genuína centelha da vida está, justamente, no caos, na desordem e no aleatório. Que a tentativa de organização é a verdadeira força motriz da vivência. Há quem diga.
Enquanto não se alinha uma posição inquestionável a respeito do tema, relato um caso pra lá de verídico, apenas para estimular o saudável debate. Com ordem, é claro:
Conheci um sujeito tão metódico e ordeiro que um dia, cansado da rotina, queimou os próprios chips e quase provoca um desastre geral.
Todos os dias limpava duas vezes os sapatos no capacho da entrada, cumprimentava o porteiro, apertava o número cinco no elevador, fazia o sinal da cruz, dava duas voltas na fechadura, beijava a esposa, acariciava os filhos, estirava-se no sofá, tomava dois goles, acendia o charuto e adormecia contando carneiros de uma raça definida. Um dia, em tempo de carnaval, limpou os sapatos no porteiro, beijou o elevador, fumou a chaves, acendeu a esposa, estirou-se no capacho, bebeu o sofá e adormeceu fazendo o sinal da cruz, ou coisa que o valha. Dessa vez, contou um rebanho inteiro de ovelhas de muitas cores que pulavam e cantavam sob o comando de um alegre pastor gordo.
Nesse dia será que teve seu momento de surpresa e liberdade?... Será?
Não sei. Não entrarei nessa discussão enquanto não se encaminhar a solução para o seguinte impasse – nascer com ordem para morrer com método, ou nascer com método para morrer com ordem?...
Enquanto isso, pensemos. Enquanto pensamos, que venha aquele sorvete de chocolate, creme e morango, com uma cereja em cima. Primeiro o creme ou o chocolate? A cereja por cima ou por baixo? E o morango?
Sejamos metódicos... ordeiros... o sorvete pode esperar. Pode?  

GUERRA À PAZ

Já teria dito alguém que, enfim, não teremos a terceira guerra e sim a paz mundial. De fato, apesar ou por causa dos enormes e insuspeitos esforços de paz – aquele estudo de plena harmonia, onde tudo medra e tudo cresce, positiva, benéfica e dinamicamente, foi substituída pela pacividade e pela alienação.
A paz de nossos dias, lotando a rica agenda de uma diplomacia tão sofisticada quanto irresponsável e festiva, rebentando e raiando no brilho das medalhas e dos brasões, empanturrada de “heroísmo”, fartando a ilustre cegueira de muitos governantes, tão cantada e festejada pela santa inocência de todos nós, tem sido, isto sim – a faca no peito, a bala no cano, a mão na garganta, a venda nos olhos, a bucha na boca, algemas trancadas, a fagulha sempre vizinhando a palha, a bomba tique-taqueando o tempo, o fantasma atrás da porta, o medo espremendo o coração das pessoas, a corda estirada, maneias, sogas, soiteiras – uma grande loucura, bem montada, livre e solta, tropeando misérias...
A paz que nos tem feito entoar hinos e desfraldar bandeiras é a mesma que feriu o Papa e assassinou Kennedy; é aquela que arrazoa e justifica o colonialismo, a escravidão e as ditaduras; que alimenta e nutre a corrupção em mordomias e falcatruas; que esconde o pão e ostenta as armas; que distribui as drogas e a promiscuidade; paz dos casuísmos, da repressão, do salário minguado da doença e da fome; paz que permite o moralismo enquanto censura a moralidade.
Paz que cala o poeta, que sufoca o canto, que descolore crianças, que ironiza o pranto, que desmente a vida, que sufoca o sábio, que desfaz a lida, que desencanta o truque, que não perdoa o trote, não é paz – é desenlace, é morte. Pois esta anda às clarinadas por aí, pensando que é tudo, quando é nada.
Paz que suja os rios e queima as matas; que incendeia os mares e polui os ares; que dizima as baleias e cerceia os pássaros; que escasseia o bálsamo e multiplica o veneno; que mata os prados e se espaça em desertos.
Até quando? Até onde?
Dia chegará em que será bem vinda e bem chegada a guerra que acabar com essa paz. E quando a explosão humanista bombardear todas as consciências, saberemos que essa guerra chegou. Será a terceira e última...
Será?

O COMUNISTA

Lá pela década de 50, o Partido Comunista Brasileiro vivia na mais absoluta clandestinidade. Tudo o que dissesse, fizesse ou pensasse era, rigorosamente, ilegal. Volta e meia prendiam um camarada aqui, outro acolá, e às vezes trancafiavam grupos inteiros.
Dom Pedrito, que naquele tempo estava plenamente inserido no contexto nacional, também abrigava partidários de Marx. E não eram tão poucos assim...
Em assembléia geral, enchiam bons quatro bancos da Praça Central. Só os partidários, é claro. Se fôssemos contabilizar os curiosos, precisaríamos de todo o Largo da Estação Férrea.
Pois, certa feita, os comunistas locais resolveram desencadear um ardente comício de preparação ao grande e redentor levante. A notícia corria em surdina, cuidadosamente codificada, passava de boca em boca, articulando a secreta senha da revolução.
O encontro seria na frente da casa do líder maior, lá no bairro, quase fugindo da área urbana da cidade.
O sinal para o momento da reunião seria um ruidoso e ensurdecedor foguetório. Era mês de junho e a contemporaneidade do evento com as festas de S. João, seria a estratégia genial para não levantar suspeitas e não cutucar a força repressora. Dito e feito! À hora aprazada do dia escolhido estouraram as bombas, incendiando a fria noite do outono pedritense.
Joselmar Alves, vulgo Chinoco, um tipo popular, acidente da vida, dono do maior e melhor quinhão de inocência deste mundo, fisionomia quase asiática (daí o apelido), simplório, serviçal, ajuntado com Ivonete, transpirando ignorância e infantilidade por todos os poros, não ficou indiferente aos foguetes e correu na direção do tumulto.
Lá no palanque, dizia-se isto e aquilo a respeito de patrões e empregados. Convidava-se o povo para tomar o freio nos dentes e disparar pampa a fora em busca de poder e liberdade. Falava-se muito na heróica Bolchevista e na histórica virada a favor do proletariado.
Chinoco não entendia o verbo mas estava encantado com toda aquela barulheira. Curioso, esperava o espocar de mais foguetes e, como criança, catava os panfletos que choviam graciosamente, por conta dessa intentona. Nisto, foi um corre-corre, um Deus nos acuda.
Era a Força Repressora que chegava inteira e decidida, desmanchando o comício e prendendo uns e outros. Nessa confusão pegaram também o Chinoco para explicar-se no Quartel.
Naquela noite, Ivonete não teve seu companheiro dividindo o travesseiro. Lá na guarnição, interrogava-se este e aquele para saber-se a dimensão da revolta e a aquilatar-se os efeitos da travessura. No interrogatório, foi inevitável o exercício de saudáveis joelhadas e instrutivos cascudos, só para objetivar as respostas. Chinoco não ficou fora desse salutar expediente. Aliás, recebeu dose mais generosa porque, na verdade,  suas respostas confundiam o Conselho Inquiridor. Um dos Conselheiros, em momento de extrema estafa, chegou a afirmar que aquele era o grande mentor do movimento subversivo. Logo convenceu-se do contrário...
Ao amanhecer, Chinoco foi solto, levando uma imensa baralhada no peito e um belo galo na testa.
Na cidade pequena, a fofoca logo se espalhou. A própria Ivonete, esposa dedicada, de origem bugra, tão inconscientemente feliz como o marido, também ficou sabendo que Chinoco tinha sido preso como comunista.
Ivonete era católica fervorosa. Naquele tempo, católicos e comunistas fugiam uns dos outros como o diabo da cruz. Naquele tempo...
Às sete da manhã, Chinoco bateu na porta de sua Ivonete. A porta se abriu e uma tranca de madeira de lei, habilmente manobrada pela doce Ivonete, achou o outro lado da testa do marido folgazão, má conduta, herege, comunista.
Uma surra na guarnição e outra em casa, só para aprender!...
É, pois, que nesta vida cada indivíduo há de pagar o preço de suas convicções ou pela falta delas... Na rua ou dentro de sua própria casa!!
Esse é o mundo. Assim é a história...

O PONTO ROUCO

Naquele inverno, de tantos desencontros do clima – numa hora, frio de rachar, na outra, calor temporão – sobreveio uma virose maluca que botou metade da população na cama.
O circo-teatro Biduca, que ambulava, no mínimo, seis meses em cada paróquia, quase fechou em razão do inusitado. As baixas no setor artístico foram tamanhas, que foi preciso encenar a peça “Bonequinha de Luxo” apenas com homens. Ficou estranho, mas o espetáculo não podia parar... E o pior é que a violenta gripe atacara a garganta de uns e de outros. Calamidade geral!...   
Lembro de um sábado – casa cheia – quando a apresentação do drama “O Direito de Nascer” teve lá seus graves percalços. O “ponto”, atingido em cheio pela gripe, ganhou uma formidável e indisfarçável rouquidão. Sua voz, de muletas, chegava trôpega e fanhosa, ao ouvido dos atores. Estes, maior parte também picada pelo vírus, estavam surdos como porta de masmorra. Era uma batalha cruel de sons confusos e audições duvidosas. As mãos em concha nas orelhas, emprestavam um brilho cômico à coreografia geral. O resfriado comprometia a arte!...
De um lado o “ponto”, com voz sumida e de outro, atores com ouvido precário, compunham o quadro de difícil solução. O público compreensivo, que já havia decorado a peça (essa era a 15ª apresentação na temporada), dava uma ajudadinha, ditando as falas. Instalou-se assim um ambiente interativo de franca cooperação entre platéia e artistas, digno das melhores idealizações sócio-operativas. Isso mesmo, na deficiência, visível e audível, do “ponto”, entrava o público, soprando os diálogos, empurrando o espetáculo para sua conclusão satisfatória e não menos apoteótica.
Antes de continuar o relato, é justo que se explique o que vinha a ser o “ponto” no teatro, para que as gerações de agora não fiquem órfãs dessa informação. “Ponto” era aquela figura fundamental que jazia, estrategicamente escondida do público, sob o tablado, de frente para os atores, ditando as falas da peça. Sua locução, de preferência inaudível para o público e necessariamente audível para os artistas, era chave para o bom e perfeito andamento do espetáculo.
Mas, naquele inverno louco, a ordem dos fatores quase altera o resultado.
A gripe comprometera a técnica convencional da apresentação teatral. Por isso, o público, solidário e sensível, fazia sua parte ajudando no desenrolar do evento, ditando falas, soprando diálogos e aplaudindo, com sincero entusiasmo, o contexto geral. Tudo ia bem, não fora um pequeno acidente que se tornou grande no desenvolvimento dessa história gripal.
No meio das soprações, de repente, veio lá do fundo a vigorosa e convicta mensagem despaletada de um incauto, imerso na massa e no álcool. Aos quatro ventos, gritou “vivas ao Dr. Getúlio”... O ator da vez, já habituado ao esquema improvisado, repetiu o dito, com ênfase e arte, distraidamente. A provocativa citação não ficou sem resposta. Também, lá do fundo, alguém contraponteou dando “vivas a Lacerda”. A confusão então generalizou-se!
De pronto, surgiram, como que por encanto, lenços vermelhos, brancos, azuis e verdes. “Caudilho” – diziam uns. “Reacionário” – respondiam outros. “É o pai dos pobres”, dizia um lado. “É a mãe das negociatas”, dizia o outro. “Protetor dos trabalhadores”, gritava a ala da esquerda. “Padrinho do Gregório Fortunato”, respondia a ala da direita. O confronto pelas vias de fato, era iminente.
Albertinho Limonta, personagem central da novela, querendo salvar a cena, caiu, ruidosamente de joelhos, levando ao rosto seu cachecol de seda pura. O público, então, susteve-se no ar, esperando, curioso, a conclusão da manobra.
Albertinho ergueu-se, súbito, mirou o povo e espirrou sonoramente. “Saúde!”, recomendou o “ponto”, com voz forte, recomposto milagrosamente pelo susto.
“Salud y plata, y una buena mulata” – completou o bêbado, autor da confusão. Aplausos gerais, reforçados por toses, pigarros, espirros, chiados e risadas... roucas, mas sinceras.
E assim, escreveu-se mais uma página da história teatral de nossa gente, que sempre soube vencer as gripes, mas que nunca deixou de padecer as recidivas da revolução política... O espetáculo não pode parar!...

VER OU NÃO VER

Ainda não estou no ponto de andar por aí cumprimentando postes, mas quase. Devo confessar que enxergo bem pouco. Em movimento, então, é um desastre: - ou vejo o que enxergo, ou não enxergo o que vejo. Graças à sorte, um certo juízo e, especialmente, à competência do meu amigo Diuga, ainda sou admitido na roda dos que enxergam. Uso óculos é óbvio. Dois, para ser exato. Tito e Laval, que são craques nessa ciência, sempre resolvem meus problemas com amizade e muita eficácia. Aliás, se a humanidade quisesse tirar um dia de folga só para falar e orgulhar-se dos seus inventos, certamente diria muitas virtudes sobre esse prodígio que chamamos de óculos. Em ambientes mais sofisticados, não falta um que argumente com coisas mais modernas, tipo lente de contato, operação a laser e outros babados. Ainda fico com os óculos que vale por dois ou mais. É a chamada lente progressiva, que mata dois coelhos de uma porretada só. Serve para longe e para perto. Para ser sincero, não me adaptei com esse – ainda não nos entendemos. A tal estrovenga exige certos movimentos de pescoço, que a coluna não mais autoriza e requer alguns contorcionismos de olhar que não me atrevo experimentar assim, sem continuado e severo treinamento. Fiz os óculos e uso de vez em quando. Para andar em shopping é ótimo – conseguimos olhar para frente, na média distância e assim não corremos o risco de andar em círculo. Com calma, paciência e algumas caretas, podemos conferir os preços das vitrines que, diga-se de passagem, estão cada vez mais diminutos. É bom também para ver televisão com antena parabólica e pilotar o complicado controle remoto. No entanto é altamente não recomendável para descer as escadas...
Lá do fundo da minha deficiência ouço, com inveja, a pitoresca história de um moço destas paragens que certa feita precisou usar óculos. O espanto da família, amigos, familiares, vizinhos e conhecidos foi imenso:
-         Tão moço e já precisando de óculos...?
Mas aí veio a pronta justificativa, para alívio de todos:
-         Fulano vai ter que usar óculos para diminuir sua força visual, ele não enxerga de menos e sim demais. Serão óculos especiais – meio turvos e escuros para deter, um pouco, essa fúria enxergativa.
Imaginem que o pobre rapaz já está desenvolvendo alguns traumas e complexos em razão do exposto. Vê além paredes, além vestidos e outros aléns... Que problema!...  
Meu amigo e compadre Geraldo Weimann, dono de uma bela e saudável miopia, hoje um psiquiatra notável, quando estudante e colega de pensão, assinou um repente saboroso. Estávamos acomodados num dos bancos da praça Osório, em Pelotas, mansamente trocando porquês, quando chegou-se um conhecido muito perguntador.Ao ver Geraldo limpando os óculos, perguntou:
-         São de grau? Ao que Weimann respondeu: - Não, são óculos...
Geraldo continua cada vez mais míope mas também continua enxergando cada vez melhor a alma humana. Drumond de Andrade consegue ver o homem atrás dos óculos e do bigode. Vê também um bonde cheio de pernas. E vê o mundo, vasto mundo, dizendo que se um dia se chamasse Raimundo seria, no máximo, uma rima e nunca uma solução.
As lentes da poesia são sempre muito potentes...
Entre trevas, nuvens e vultos, me ocorre perguntar: Ver é saber ou saber é ver? Vê quem sabe ou somente sabe que vê? Ver o quê? O discurso traindo o exemplo? A paixão subvertendo o amor? O interesse subjugando o ideal?
A linha ou uma tropa de elefantes passando pelo buraco da agulha?
Ver a dignidade batendo boca com a miséria? Ver o quê? Ver pombas voando aos pombais serenas e nossos sonhos voando céleres pra nunca mais?... Quem quer, enxerga o porquê – quem não quer, vê e só vê.
O pior cego, geralmente, é o melhor impostor – vê o que quer, não acredita no que vê, fecha a porta, cerra as cortinas e manda o acaso fazer outro mundo à sua imagem e semelhança, em favor de seus exclusivos interesses. Isso existe?
É só ver para crer... Ou será o contrário?...

PELOS OLHOS DA VACA

“Eu sou a vaca!
Meu dono me chama de Rosimeri. Eu atendo e aceito, mais para satisfazê-lo, pois sei que os homens necessitam colocar nomes em tudo. Nós, os bovinos, que temos os sentidos mais apurados, não precisamos desse expediente. Jamais confundimos a vaca com a vaca. Não existem duas iguais. Nem mesmo os homens são todos iguais...
Eu disse “meu dono” – ah, essa é outra concessão que faço, sabe como é (?), o homem precisa pensar que é dono das coisas. Com esse pensar ele manobra as barafundas de sua enlouquecida cabeça. Cá entre nós, a cabeça do homem é complicadíssima... Ele pensa que é o único que entende o mundo e a vida. Tem a pretensão de achar que é o único que sabe decifrar a linguagem da natureza e por isso se auto-denomina animal racional, ser pensante, rei e outros títulos pomposos. Fico bem quieta – não sou desmancha prazeres. Só observo, a distância. O pobre faz um enorme esforço para compreender o que nós, vacas, estamos caducas de saber.
Ele acha, por exemplo, que somos muito indefesas e faz das tripas coração para nos proteger. Na verdade ele quer proteger seu negócio. Sinceridade é bom e eu gosto. Nós aceitamos a proteção, passivamente, pois, no fundo, sabemos que o infeliz quer é compensar sua própria fragilidade. E como o homem é frágil!... Só de pensar nisso fico comovida. Às vezes me dá vontade de pegá-lo, mimá-lo, acariciá-lo. Só não faço isso porque, de fato, confundiria sua fraca cabeça. Já imaginaram que escândalo seria uma vaca com seu dono no colo?... Até que seria engraçado. Ah, esse é outro capítulo estranho nessa história. O homem ri de coisas absolutamente sem graça. Ri de si mesmo, pode?... E não sabe fazer isso em silêncio, como nós. Aí é que está o bom da graça – morrer de rir sem dar a perceber – é bem mais divertido e não esquenta desconfiômetro de ninguém.
Mas, voltando à vaca fria, como costuma dizer nosso herói (nunca dominei o sentido exato dessa expressão, e nem vale a pena), os homens têm tanta necessidade de posse que são capazes de matar ou morrer por um pedaço de chão. Cada um quer ter um retalho maior do vestido da mãe natureza e, no entanto, vi poucos merecendo isso e nenhum levar consigo o seu pedaço, quando morre e vira pasto. Mas a vontade é tanta de levar um pedaço desse pano, que ficam imaginando lugares distantes e vidas permanentes. Lá bem longe, onde o focinho brigou com a tromba. Não percebem que toda a existência cabe aqui, onde pisamos e respiramos, onde pastamos e bebemos, onde nascemos e morremos. Tudo o que nos cerca é tão bonito, grande e misterioso, que não se precisa imaginar nada além disso para ser feliz. Mas esse é outro problema do homem – é tremendamente insatisfeito. Sempre quer o que está lá e despreza o que está aqui. Já cansei de ver – e desmaio de tanto rir – homens pescando.
O que está deste lado do açude joga a linha para lá. O que está do outro lado joga a linha pra cá. Perceberam o absurdo?... Os peixes, eu sei, estão em todo o açude, só os homens não enxergam isso.
Dia desses estava eu quieta no meu canto, brigando com minhas moscas e ouvi um alarido na casa principal. Eram duas comadres falando muito alto e chamando uma à outra de “vaca”. Diziam – “Sua vaca”! Não sei se estavam se desaforando ou se elogiando. Nem quero saber. A raça humana às vezes diz tanta coisa sem sentido que nem vale a pena prestar atenção. Salvo melhor juízo, penso que estavam se elogiando. Mas como gritavam... Acho que eram bem surdas, as comadres.
Por falar em paradoxos, fiquei um tanto chocada com o “meu dono” que, alegre e satisfeito, saiu por aí dizendo que ia colocar uma vaca no carro para poder carregar mais bugigangas. Esse é outro problema – os homens não sabem dar um passo sem uma porção de malas, pesadíssimas, por sinal. Quanto à “vaca” no carro, prefiro não aprofundar o assunto para não perder o bom humor.
Pensando bem, acho que sou importante para o homem. O segundo leite que ele dá a seus filhos é o meu. Pelo menos até pouco tempo era. Depois que ele entrou nessa neurose de higiene e outros fricotes, só acredita em latas e saquinhos. Me contou a Isaura que até os pensamentos humanos já estão sendo embalados em latinhas e caixinhas. Tudo muito limpo e (desculpem o palavrão) “pasteurizado”. Desse jeito a coisa vai mal. Eu não falo nada, Deus me livre, cala-te-boca! Não estou aqui para complicar a vida. Para isso bastam os homens. Eu estou aqui, mansamente, ruminando e ruminando, enquanto essa lua não passa, essa porteira não abre e essa vida não morre...”

A OVELHA LADRA...

Na verdade, a ovelha bale, mas são tantos os mistérios entre o céu e a terra que, às vezes, somos obrigados a espichar as fronteiras de nossa vã filosofia.
Para relatar um recente abigeato ocorrido no “povinho das sina-sinas”, arredo o aramado do conhecimento para abrigar o gordo rebanho dos absurdos e dos disparates.
O caso parecia simples na lavratura competente do inspetor de plantão: - Algumas ovelhas maneadas jaziam semi-vivas (ou semi-mortas), no interior de um carro de passeio, em lugar ermo, em hora suspeita.
Os fatos: - O piloto da tal condução e seu comparsa, instados a parar na barreira policial, para meras e habituais averiguações, contraditaram a ordem, acelerando em disparada. A polícia, diante de tamanho desacato, lançou mão de ação extrema, abrindo fogo contra a viatura. Acertou o ombro de um, mas o outro escafedeu-se  perdendo os chinelos. Mais perto, constatou-se a presença de uma dúzia de animais ovinos, mal acomodados, no interior do auto fugitivo. A singela dedução do “quem não deve, não teme”, foi suficiente para admitir-se que era um ilícito, considerando a reação intempestiva dos donos do veículo, diante da blitz policial.
No aprimoramento das investigações, verificou-se que as ovelhas pertenciam a terceiros e que nenhum documento oficial chancelava a legalidade daquele transporte. Abigeato puro e simples – sem dúvida!
Dúvida?...
Uma boa e farta embretada de dúvidas foi o que se seguiu nesse inquérito, quando o advogado esparramou argumentos em defesa dos ocupantes do carro em causa. Somente um era o dono, o outro era apenas um “carona” acidental.
O proprietário do sedã dizia, através de seu verboso defensor, não ter a menor idéia de como aqueles bichos tinham ido parar no interior de seu automóvel. Aproveitava para dizer, inclusive, que tal acontecimento o desgostava, profundamente, não só pela aberração mas, especialmente, pelo incômodo do prejuízo no estofamento e arredores. Sugeria, até, iniciar-se tratativas com vistas a uma procedente ação indenizatória, tão justa quanto justificada.
Quanto ao carona acidental, literalmente  acidentado, uma tropa de boas razões o socorrem, exigindo sua inocência sumária. Visto estava que o atropelo  de circunstâncias inconseqüentes violentou o arranjo e a ordem de sua ilibada volição cidadã, jogando-o no olho de um furacão casual, vitimando-o, lamentavelmente. Enfim, dois anjos pegos a traição pela insânia mundana, justo no imaculado portal dos cânticos etéreos. Que pecado...!
Já os policiais, de agredidos, passaram, milagrosamente, à condição de agressores e agora povoam páginas e páginas com justificativas e explicações. Tentam explicar por que estavam de campana e por que abriram fogo. São obrigados a esclarecer por que a água é mole, o fogo é quente e a roda é redonda.
Explicarão e justificarão, um dia, e tudo ficará bem.
As ovelhas e os proprietários, no entanto, estão em maus pelegos. Terão de buscar, a peso de ouro, verdadeiros gênios jurisprudenciais para safarem-se dessa formidável enrascada patrocinada pelo comportamento pernicioso de uma ovelha, provavelmente azul, que, criminosamente, desencaminhou todo o rebanho. Invasão de propriedade é o mínimo que se deverá imputar à conduta delinqüente dessas marginais de lã.
E os proprietários, então, culposos contumazes, onde estavam e o que faziam quando deveriam prover boa educação e princípios morais ao rebanho rebelde?... Onde já se viu invadir, assim graciosamente, propriedade alheia como se este rincão fosse terra sem lei?...
Reponha-se a ordem e a legalidade, enquanto é tempo, em nome da justiça, da paz e da liberdade. Tudo pela dignidade de nossas instituições!...
Diante do relato – na crueza dos fatos – questiono: - A ovelha ladra, ladra ou não ladra? Hein?...
Os fenômenos estão aí para quem deles quiser tirar bom partido, até em nome da sempre saudável cultura geral. O saber e o conhecer não ocupam lugar. Acreditar, confiar, compreender, explicar, produzir, policiar e justificar sim, são verbos que sempre enchem os espaços. E como enchem...!
Daqui onde estou, antes que o século acabe de balde, dá bem para ouvir o balido dos cães, o ladrar dos gatos e o miado dos burros, enquanto a caravana passa, garbosa, pelo umbral rotundo dos milênios pardos...
Até quando?...
Quosque tandem, Catilina?...! 

O COMETA

Dona Laurinha tinha tudo para ser escalada na equipe titular de histeria.
O último ataque, com direito a todos os chiliques que a medicina conhece, teve como causa objetiva os desarranjos de seu mimado gato angorá. Dr. Paranhos, médico experiente e dedicado, já sabia essa lição de cor.
Quando chamavam para atender dona Laurinha, Dr. Paranhos prescrevia os procedimentos de praxe. Depois do surto – o olho do furacão – sobrevinha uma longa fase de lucidez e atividade produtiva. De ataque em ataque, sua estimada cliente is galgando os tortuosos degraus da vida, rumo a uma longevidade digna do livro do recordes. “Mulher gemida – mulher para toda vida” – esse é um adágio que muito sabe da verdade.
As histórias de dona Laurinha tinham um roteiro conhecido. Primeiro era o desmaio, com direito a tremuras e outros quetais. Quando voltava a si, dava início à sessão de torrentes lamentações. Falava no falecido – ressaltando as imensas e incomparáveis qualidades do dito cujo. Depois, queixava-se do mundo e dos tempos loucos dessa modernidade sem critérios. Nesse ato engasgava-se com ênfase e pranteava, ruidosamente, sem derramar lágrima sequer.
Quando a verborragia alcançava os píncaros, seguia-se um novo espetáculo de coreográfico desmaio. A criadagem, atenta, corria na volta. A parentada azulava uma sofreguidão sem par. Em cada crise dona Laurinha ia pondo sua mossa no tempo, sem medo e risco de envelhecer.
Num domingo avulso, cheio de sol e preguiça, Dr. Paranhos foi chamado, às pressas, para atender sua pitoresca paciente amiga. O quadro era o de sempre. Dr. Paranhos tranqüilizou-se e acalmou os circunstantes. Quando refez-se do primeiro desmaio, dona Laurinha virou-se para o médico e disse, com visível e contagiante alegria adolescente nos olhos:
-         Doutor, estou feliz! Agora Deus já pode me levar. O que vi nesta madrugada é a beleza suprema da natureza. Estou satisfeita, não preciso ver mais nada. Dr. Paranhos, eu vi o cometa... Que maravilha!
Dr. Paranhos, então, preocupou-se – isso não estava no script de dona Laurinha. A doença agravara-se de repente. Alucinações não estavam no programa...
-         Doutor, não posso esquecer aquela cauda luminosa!...
-         Êpa! A coisa é séria. Isso é delírio galopante...
-         Reparando bem, doutor, dava para ver a mão de Deus regendo um imenso coral de anjos, do meio daquela luminosidade indescritível!...
-         Ih! O caso é grave mesmo. Minha paciente agora vê cometas, anjos e coisa e tal. Acho que serei obrigado a reforçar a química do tratamento. Vou experimentar a novidade que aquele viajante deixou ontem no consultório, raciocinava o diletante Dr. Paranhos, um verdadeiro cientista, bom clínico e reconhecidamente desligado.
A bem da verdade, diga-se que Dr. Paranhos era tão dedicado quanto distraído. Excessivamente concentrado, diziam todos, com carinho. Seguidamente tentava meter sua chave em porta de carro alheio.
Não raro comentava assuntos políticos e sociais rigorosamente vencidos. Era comum ver o admirável soldado de Hipócrates, às horas tantas, no hospital, espreitando o sono reparador de um cliente seu. Sua vida médica era um autêntico e genuíno sacerdócio. Um homem raro, sem dúvida.
-         Dona Laurinha vendo cometas! – só me faltava essa ...! O caso é gravíssimo.
Saiu dali decidido a encontrar uma solução terapêutica para o problema. E que problema! – alucinações, delírios...
Quando entrava em casa topou com um amigo da redondeza:
-         E aí, doutor, viu o cometa?...
-         Que cometa?...
-         Ué, doutor, não me diga que não viu, todo o mundo viu!...
-         Como assim?...
-         Pois esta noite passou um cometa dos bem grandes. Parecia uma bola de fogo deixando uma cola de luz que mais parecia um disco voador!...
-         É mesmo?...
-         É, o senhor não viu?
-         Ah, o cometa! Claro que sim... claro que sim...

HERMES

Hermes é um negro velho desses de estimação. Não tem idade certa e não se sabe bem onde nasceu. Fiel e trabalhador, os olhos e o garrão não desmentem. Bebe uma cachacinha só por prazer e tradição. No bolso, a fumeira traz muitos por-fazer... e pita com gosto, desafiando, na fumaça, antiga e preguiçosa, o espaço, o tempo e as filosofias complicadas dos homens de gravata. Hermes não tem pressa de viver, pois sabe que a morte é certa e a cabeça está sempre entre as orelhas. Conhece as vontades da terra e mexe nela com carinho e zelo. Há como que um pacto surdo e secreto entre eles; tudo dá certo e as plantas nascem e crescem viçosas de fazer inveja. Hermes não tem grandes conhecimentos sobre a natureza, o mundo e a vida; ele próprio é a natureza espontânea, mansa e harmônica, com dois braços, duas pernas, voz a bombacha. Vivia no campo e hoje mora na cidade.
Um dia desses, Hermes foi ao doutor. Andava muito ansiado com aquela dor no peito, que às vezes respondia mais forte nas costas. Aquele mau dormir, a pressão na cabeça, dor no vazio, soluço, tremer de frio, um inferno. Era a primeira vez que consultava, pois, até ali, chá e benzedura tinham sido santos remédios. Mas a queixa de fundo, a verdadeira, o chão do poço, era um vizinho má conduta, perigoso, homem de má idéia que andava perseguindo o pobre do Hermes. Onde quer que ele fosse, onde quer que ele se sentasse, lá estava o dito cujo, espiando, ameaçando à distância, rogando praga, pondo mau olhado. Era perseguição sim, ele sabia muito bem. Só não via quem não queria... Mas por que o vizinho tinha pegado no pé  dele? Ah! Para lhe apunhalar pelas costas, para lhe roubar o sossego, para lhe tirar a paz. E a perseguição era cada vez mais clara, mais declarada. A intenção dava para ser entendida até por uma criança...
Todo o mundo se preocupou com a história. Logo se foi tirar a limpo o que estava acontecendo. Sabe como é, nesses dias de hoje em que, sem motivo algum, as pessoas começam a fazer coisas malucas, a violência e a agressividade não pagam imposto, seria melhor pedir à polícia para investigar o caso.
A polícia correu ruas, entrou por becos e saiu por logradouros, perguntou, indagou, observou, policiou e nada. Transitou na vizinhança de Hermes e não suspeitou de ninguém. Nem o compadre Lifonso que, verdade seja dita, há tempos andava meio esquisito, indiferente com a vida e com os amigos, tinha condições de perseguir alguém. Ao contrário, todos gostavam muito de Hermes e, naquela vida, mal havia tempo para fugir da perseguição da fome e do frio...
Mas a polícia não descansou – voltou à carga, para não ser acusada, mais uma vez, de imprevidente. Inquiriu o queixoso, sobre um possível desafeto; alguém que não gostasse dele por algo que, por ventura, tivesse feito, dito ou pensado. Nada. Imaginou-se um louco, um desvairado que, como um meteorito que cai ao acaso, tivesse igualmente, ao saber do imprevisto e sem razão alguma, caído sobre o pobre Hermes, com toda a sua fúria. Nem isso ocorria. Mas a queixa continuava latejando e latejando...
Dois dias depois da consulta, Hermes foi baixado com farta crise nervosa, de causas ainda incertas. Um tal de Dr. Sobral assoprou que se tratava de paranóia. Ou isto ou aquilo, foi um baque duro para todos. Dona Carola disse, gravemente, que aquilo era porque já fazia dois domingos que Hermes não ia à missa. Alguém disse que era a erva mate que estava contaminada, e houve gente que culpou aquele vento norte irritante, mole, meio doido...
Fez-se tudo o que era possível: bom quarto e atenção, remédios e sono reparador, comida leve e um cigarrinho feito, muito carinho e compreensão. Foram alguns dias de cuidados minuciosos. Depois de muitos tratos e rezas, finalmente, Hermes começou a melhorar. Já dormia melhor, comia bem e não repetia mais a história de perseguição. Aquela terrível pressão na cabeça, tinha passado como chuva de verão. Enfim Hermes tinha sarado. O doutor veio para dar alta:
-         Como vai, Hermes?
-         Bem melhor, sim senhor.
-         E a dor no peito?
-         Já nem sinto mais, não senhor.
-         Está bem?
            To, sim senhor. Melhorei bem com aqueles remédios que o senhor me deu, e depois que aquele homem parou de me perseguir.

AS TIJOLETAS DE LAU

Quando as coisas ficaram pretas, Laudelino pulou do barco da normalidade e saiu por aí, dando braçadas ao léu da sorte. Quem passasse na praça, a qualquer hora do dia ou da noite, poderia assistir, de graça, as passadas tresloucadas desse cristão, pulando tijoletas, numa coreografia intrigante e contagiante.
Mais conhecido por Lau, proprietário de uma fisionomia carismática, maltrapilho, ostentando uma verruga na testa, uma gravata cor-de-rosa e uma cartola surrada, fazia a alegria de uns e o constrangimento de outros.
Um jornalistazinho do pequeno semanário do lugar, pretendendo tornar-se grande em sua nobre missão profissional, um dia decidiu entrevistar o popular Laudelino Quaresma Calçada. Pensava, isto sim, na notoriedade que a iniciativa lhe traria, considerando a raridade da matéria e o inusitado conteúdo da reportagem, de olhos presos em prováveis apreciações positivas, pairantes bem além do jardim. Era possível até que o escorreito e atento grupo dos Direitos Humanos guinasse suas atenções para a contundente entrevista e aportasse, de mala e cuia, no povinho, para ver de perto o fenômeno que, afinal, também lhe dizia respeito. E assim fez.
-         Nome?
-         Lau...
É oportuno que se diga que Laudelino recitava o próprio apelido com audível dificuldade em função de uma contratempo funcional não raro à maior parte do povo desta Pátria amada idolatrada, salve, salve. Acontece que o pobre Lau há muito tinha perdido mais de dois terços dos dentes, e sua boca encachaçada comprometia boa pronúncia, nos palcos da razão e do bom entendimento.
-         Como?...
-         Lau, ora!
-         Certo, certo. Por favor, poderias parar um pouquinho para podermos conversar...?
-         Não posso parar!...
-         Então, como vou poder te entrevistar?
-         O quê?... e lá ia Lau, pulando e pulando, divertidamente.
O deslumbrado jornalistazinho não teve outra alternativa senão ir atrás, ensaiando pulinhos a contragosto.
-         Quero uma entrevista, certo?...
-         O que é entrevista?
-         Uma conversa entre amigos, para o jornal...
-         Ali no banco tem jornal...
-         Está bem. Já vi. Mas estou falando de outro assunto.
E vá pulos de lá pra cá, daqui pra lá...
-         Tens família?
-         Quê?...
-         Família: - mulher, filhos, pai, mãe, essas coisas...
-         Lau tem chapéu!...
-         E família, tens?...
-         Lau tem gravata...
-         Tudo bem. Por que pulas as tijoletas?
-         Tisoletas – o que é tisoletas?
-         Isso aí... Poderíamos parar um pouco? Já estou cansado.
-         Lau não tá cansado...
-         Eu falo das tijoletas do passeio público, da calçada...
-         Meu nome é Carçada...
-         Isso eu sei. O que quero saber é por que o senhor anda por aí pulando tijoletas...
-         I eu sei?
-         Ah, então o senhor não sabe?...
-         Si subesse eu contaria pro senhô...
-         Então fale de sua vida.
-         Vida?...
-         Isso mesmo. Sua vida. Seus amores, sua ocupação, sua casa, seus ideais, suas emoções e suas razões.
-         Ih, moço, essa conversa é chata...
-         Tudo bem, então fale de seu passado. De onde você veio? Como? Quando? Por que?...
-         Moço, me dá uns trocado?... Me dá?...
-         Te dou. Mas tem uma condição – pára de pular para podermos conversar direito.
-         Nada feito, não posso parar...
-         Então, está bem. Vamos continuar pulando. Que graça tem isso?...
-         Graça?... Pule moço. Aí não – o senhô queimo a linha...
-         Que linha? É tudo igual...
-         Não é, não senhô! Tem as preta, tem as vermeia, tem as branca...
-         Não estou vendo diferença...
-         Olhe daqui, olhe daqui...
-         Não vejo nada.
-         Pule mais que o senhô vai vê.
-         Estou pulando.
-         Pule, pule, moço.
-         Estou pulando...
-         Mais alto, mais alto, moço.
-         Pronto! Bem alto! (acho que não vou agüentar...)
-         Agora sim, tá vendo...?
-         É, acho que estou...
-         Viu...? Tem as preta, as vermeia, e tem as branca...
-         Tijoletas?...
-         Não interessa o quê – importante é a diferença... que a gente vê!
-         É mesmo. Olha ali uma amarela...
-         Onde? Onde?...
-         Ali! Perto da roxa, na frente da marrom...
-         O senhô aprendeu ligeiro...
-         Olha ali outra, cor-de-burro-quando-foge...
-         Onde?
-         Ali, ao lado daquela que tem a cor do cavalo branco de Napoleão...
-         Terminou o brinquedo. Pra mim chega. Saí...
-         Vem pular, Lau, vem! Agora está ficando boa a farra...
-         To fora!
-         Então tchau! Olha aquela outra ali, cor de abacate da serra. Ih, queimei a linha... Olha esta aqui cor de avestruz no ninho... Vou dar um saltão naquela outra cor de político que não cumpre promessa. Aquela não me escapa, não me escapa, vou pular, pulei! Essa verde bandeira é difícil de pular... Vem pular, Lau, vem!
E assim se conta essa história, para que nunca se diga que a convicção não possa, um dia, enlouquecer em holocausto de uma boa causa.
Que causa?
A causa da imaginação, que prega tijoletas coloridas na vasta e promissora senda dos idealistas saltitantes em busca da verdade e... da liberdade.
Para que?
Ora! Para pular tijoletas, intrigando uns, contagiando outros...
            Vem pular, Lau, vem!...