segunda-feira, 14 de março de 2011

O PODE

       Quando então despertei para a irrecusável febre itinerante que, enfim, acomete qualquer mortal pecador, já era o ônibus o grande senhor das distâncias, fazendo a ponte das idas e vindas nesta vida cheia de encontros e desencontros. Há quarenta anos minha geração despedia-se, melancolicamente, das travessias em pesados e ferrosos trens a diesel.
         Das locomotivas a carvão – fumegantes e pardacentas, lembro vagamente. Hoje as recoloco nos trilhos da lembrança, por conta das  histórias e vicissitudes vividas por meus pais. Com imensa saudade do que nunca vivenciei plenamente, recolho, agora, algumas informações sobre as penosas ou divertidas viagens no velho, ruidoso e cheiroso Maria Fumaça.
         São muitos os causos que se perenizam nas silenciosas curvas do tempo, mas um me chamou especial atenção. Contam-me que, em cada Estação, cuja chegada sempre era uma difícil conquista, ouvia-se entremeada por vozes de estafa, gritos quituteiros eivados de balaiadas, ferros tinindo e o sopro abismal das máquinas – o comando diferenciado, altissonante, da autoridade condutora que, à distância, parecia dizer – “Bode”...!
         Mas, que “bode” seria tão grande e tão presente capaz de obstaculizar o percurso ou destravar a viagem?...
-         “Bode”? – era a pergunta ressoada nas cantoneiras da distante e solitária Estação, engolida pela imensa geografia do percurso.
-         “Bode”? – respondiam de lá – desde as entranhas enfumaçadas da verdade.
-         “Bode”? Inquiria, uma vez mais, a diletância de pilotagem escrupulosa.
-         “Bode”! – confirmava o fantasma das nebulosas decisões do destino... E assim, seguia resfolegando o trem, na segurança de seu dolente compasso, comendo trilhos campo a fora.
Mas que “bode” era esse que, afinal, comandava a cena, pipocando estrada a dentro, chancelando paisagens e despetalando lonjuras?...
Seria o bode expiatório? Ou seria o primo do bom cabrito que não berra? Será que era o doador de sangue, em holocausto, para honra e glória de Deus da viagem? Que bode era...?
Com a maturidade do espírito e do ouvido, descobriu-se que não era um “bode” e sim um “pode”...
O que se dizia, então, era: - “Pode”...!
Pode o quê? Pode quanto? Ora! Pode continuar.
Essa era a sutil continuidade da jornada, cuja segmentação era vital, ajustada e afeita ao prodígio do prosseguimento da viagem.
O “pode” era a permissão nominal, técnica e política da grande jornada, em nível e razoável segurança e aceitável comodidade, O “pode” significava mais que uma licença – era a garantia de que nada e ninguém vinha em sentido contrário para empacar, empanar, toldar ou espatifar a rota célere e barulhenta do trem.
Era bem mais que isso, segundo nossa dedução pela ótica moderna dos questionamentos comportamentais – era o livre conduto e a porteira aberta, depois de aferidas as condições e circunstâncias sócio-econômicas e regimentais da carga viva ou inerte transportadas pelo heróico comboio. Do alto do terceiro milênio, essa história aparece e parece vigorosamente, estranha. Os critérios da permissão de ontem, certamente, não são os mesmos perpetrados hoje. Que “podes” balizam nossos exercícios de ir e vir neste vale cheio de dúvidas? Que “podes” comandam nossas itinerâncias neste contexto de ser e saber, no vasto universo globalizado do ter e subverter? Que trilhos nos aguardam nessa ânsia perspectiva dos valores, convenientemente funcionais? Que valor, peso e decisão tem o “pode” em nosso moderno e permissivo mundo de trilhos transversos e estações aleatórias? Que “pode” podiam nossos ancestrais e que “pode” podemos nós?... Que permissão tinham eles e que permissividade temos nós?...
Algo me diz que um vasto trem de razões vai trombar com nossa condução social para gerar um desastre memorável. E isso será um grande e irrecusável “bode”.
Pode...! 

SOLIDÃO

      O caso do sujeito que só usava sapatos apertados pelo imenso e único prazer de poder tirá-los, na solidão do lar, depois de uma estafante jornada de trabalho, reflete bem o tamanho e a intensidade dessa incômoda e melancólica sensação.
         Incômoda? Melancólica? Veremos...
         Aquele outro, que sequer tinha uma gravata nova para usar, ou um vinho ordinário para beber, em pleno 26 de dezembro, retrata a caudal dimensão de se estar irremediavelmente sozinho.
         Conheci uma pessoa que vivia atirando pedras para o alto, na esperança de que alguma lhe caísse na cabeça. No dia em que tal ocorresse, saberia, enfim, que não está tão só quanto imagina. Contam-me que esse desafortunado foi, fulminantemente, atingido por um raio, semanas atrás.
         Suponho que agora esteja feliz...
         E todos conhecem as comoventes histórias de solidão dos inveterados catadores de conchas, dos juntadores de gatos brasinos e cães vira-latas. No mesmo bordão, juntam-se os colecionadores de lesmas de jardim e os perseguidores de trevos de quatro folhas. Ah, essa concreta e dilacerante solidão!...
         É preciso alguma ciência e muita arte para administrá-la. Ainda que incomode, será sempre útil inventar maneiras de fugir do sufocante tédio que a vida nos impõe.
         A bem da verdade, não é rigorosamente necessário se estar só para se sentir só. Conheço gente amargando solidão no meio de multidão. Quero crer que a genuína solidão é mais um estado de espírito do que uma situação de fato e de direito. O profético Lupicínio já dizia, que “nada mais solitário do que estar perto dos olhos e longe do coração...”
         No fundo e no raso, todos sabemos que a solidão é (ou pode ser) a grande e inestimável genitora da reflexão. E sobram exemplos de fundamento: - Moisés, Crusoé, Gagarin, George Sand, Teseu, Agripa, Valquíria, Nabuco e o compadre Elesbão. O que seria de nós sem tais reflexões? E teriam brilho, gênio e credibilidade senão através do berço da solidão?...
         Não digo que seja, absolutamente, inevitável estar só para poder perder. Mas, convenhamos, é possível afirmar que quem está só, tem infindáveis chances de pensar. Ou até pensar que pensa...
         No fundo escuro de mi rancho viejo, atirado sobre um catre echo de tientos, aguardo as horas que hão de me trazer o sono. Las horas pasan e yo no me duermo. Nem dorme, na costa do banhado, el têro, que às vezes grita e não sei que lamento o tiaján repete, desde ajá, mui lejos...
         Poesia – solidão – poesia!
         A terra é redonda, gira em torno do Sol, matéria é energia, a Lua não tem luz própria, a água tem moléculas, a gravidade existe, som e vibração...
         Ciência – solidão – ciência!...
         De que maneira se atingiria tal inspiração ou se chegaria a tal conclusão?...
         Sina ou escolha, circunstância ou opção, toda a solidão tem o inefável direito de cobrir-se com o manto da resignação. Mas e certo que tem irrecusável dever de consagrar a criação.
         Flagelo ou vantagem, castigo ou prodígio, solidão é esteira existencial, imponderável, que navega mar a fora no rumo da promissão.
         Mas, enfim, resgatando o conceito mais habitual do tema, devo dizer que a solidão realmente existe e produz visíveis rasgos de dor e invalidez neste nosso vale cheio de lágrimas. Há muita gente que sofre e sofre muito, por estar só. Arriscaria dizer que tem gente que está só, apenas para poder sofrer...
         De todas as histórias de solidão, gosto muito de uma, insolitamente original. Ferdinando, um solitário de caderno, resolveu, uma vez, quebrar a inércia dessa sofreguidão. Sem família, sem amigos, sem parentes, sem conhecidos, sem dependentes e até sem inimigos, desafetos e antipatizantes, decidiu investir na amizade de si mesmo. Então, passou a escrever longas, afetuosas e noticiosas cartas para si próprio. Colocava-as no correio, devidamente detalhadas, endereçadas e seladas. Ao recebê-las de volta, lia-as, com nervosa curiosidade e adolescente expectativa. E respondia-as, religiosamente, com fraternal inspiração. E tantas foram que, um dia, tudo terminou. Mas, é claro, que assim tinha de ser. Imagine que absurdo alguém escrever, indefinidamente, para si mesmo!...
- Que bobagem! Diziam todos. Mas o que o mundo não sabia, porém, é que essa tresloucada ciranda de cartas, aproximara o velho carteiro, habitual circunstante, fiel companheiro que, ainda ontem, emprestou seu braço direito para que Ferdinando não caísse no abismo quando jogava penas ao vento.
           Solidão... quem, afinal, poderá sentí-la para poder amá-la e então perdê-la como penas ao vento, em busca de novo alento?! Quem?...
          

DE QUE LADO PENDURAR?

      Como não sei desenhar – o último cavalo que rabisquei foi chamado de jeep pelo meu sobrinho – e como gosto muito de cores e ainda não desisti de fabricar meus próprios quadros, resolvi pintar mosaicos das mais estranhas e inusitadas formas. À primeira vista, parecem formidáveis intestinos multicoloridos, à espera de mais um erro de mira dos preparados atiradores da OTAN. Justiça seja feita, quadros que fariam boa presença numa Bienal bem liberal.
         Dizem que a verdadeira expressão do artista não está na imagem projetada e sim na idéia implícita que move e comove quem se arrisca a ver e entender suas obras. Vá lá que seja...
         Mas fico curioso por conhecer a intimidade dessa idéia, se é que ela, de fato, existe. Jogando na ala dessa cômoda subjetividade, vou engrossando meu repertório de subversivos triângulos vermelhos, evasivos losangos verdes e impertinentes tubos  amarelos.
         O que são? O que significam? Não sei. Mas precisam significar?...
         A arte sempre teve costas largas e a arte plástica, especialmente, tem um dorso continental para agüentar qualquer tipo de interpretação e aceitação. Por falar em aceitação, apenso, de graça, por pura liberalidade, a gostosa historinha de Moisés e os mandamentos.
         Conta-se que o Criador perguntou aos gregos se queriam mandamentos.
-         O que é isso? Perguntaram.
-         É não roubar, por exemplo.
-         Não – responderam – pois tal mercadoria tem mínimas chances de dar certo por aqui.
O Criador, então, perguntou aos italianos se queriam mandamentos.
-         O que é mandamento? Questionaram os italianos, entre uma garfada e outra.
-         É não cobiçar a mulher do próximo.
-         Não e não! Essa idéia não grassará por aqui.
Perguntou, então, a Moisés, que prontamente, indagou:
-         Quanto custa?
-         É de graça! Disse, tonitroante, o Senhor.
-         Bem, se é de graça, então, manda dez – falou Moisés, contabilizando o bom negócio.
Pego daí para retornar à arte moderna, essa incompreendida.Se e enquanto for de graça, que importa o que significa e que efeitos pode provocar?...
Mas, estranhamente, o apreciador desse tipo de expressão faz questão fechada de pagar por ela. E paga bem. Geralmente, na razão inversa de “sua escorreita compreensibilidade”. Gosto é gosto e não se discute sem cheque (com fundos)...
“Interessante” – é que, normalmente, dizem os boquiabertos intérpretes e críticos frente às obras invulgares, e morre-se sem saber o que o artista quis dizer, exatamente.
Sempre achei muito útil o caso daquela deslumbrada senhora observando e apreciando uma exposição de quadros psicodélicos.
-         Mas que luz, que cores, que movimento, que expressão...! e um estraga-prazer inoportuno quebrou a elocubração da feliz admiradora, informando que ela estava apenas olhando a janela.
Histórias à parte, devo informar que meus quadros não estão à venda e sim disponíveis para brindes, doações, trocas, empréstimos e livres apropriações. É pegar e levar. Mas não me perguntem qual o lado certo. Pendurem do lado que mais aprouver. O perigo será chegar-se em casa, depois de uma pesada segunda-feira, olhar o quadro e achar que a parede está de cabeça para baixo... Se estiver, não dê bola – dê um tapa na lógica e plante uma boa bananeira. Isso resolve? Não sei, só sei que sair da rotina, de vez em quando, é um bom caminho para se pintar o sete e esquecer o resto. Boa Sorte.

O MANUAL E A SOBREVIVÊNCIA

        Camuflado entre as leituras acidentais de fim-de-semana, estava o “Manual de Sobrevivência” em terra, mar e ar, presente de um prezado amigo.
         Não confundi-lo com o “Diário do Sobrevivente”. Imagino que a sutil diferença entre um e outro é, no mínimo, um belo galo na testa...
         Pois o “Manual de Sobrevivência” – vade mecum obrigatório de destemidos aventureiros, que ainda conseguem driblar a vigilância da psiquiatria de plantão – lá estava, tal qual um dicionário, com todos os informes necessários para o supremo desafio de resistência em habitats estranhos e ligeiramente hostis.
         No capítulo das coisas comestíveis em plena selva virgem (perdoem o anacronismo do Manual), há até saborosas receitas que incluem raízes de jalapão ao molho de formigas do brejo. Cuidado! Só valem as de pinta roxa. Medalhões de jaguarandi, guarnecido por folhas de macambira regados ao caldo de pitanga. Uma verdadeira delícia!
         Se a fome estiver naquele ponto incontrolável, a recomendação é uma refeição mais densa e substanciosa. A sugestão do chef poderá ser ensopado de sucuri, peito de onça gratinado, ou rabo de jacaré frito. Como entrada, cai bem uma generosa salada de peucédanos vivos e broto de urtigão.
         Um verdadeiro manjar dos deuses...
         Visto está que este banquete é tão apetitoso quanto perigoso – por isso, convém não perder de vista o pé de página do Manual que, em tempo, aconselha – “olho vivo e pé ligeiro”. Em letras quase ilegíveis ainda reforça – “será sempre saudável guardar bem as costas”...
         Portanto, o gourmet que tiver o real interesse de preservar-se vivo, falante e saltitante, deverá não esquecer de ser rápido e rasteiro ou... precisamente, mais rápido e mais rasteiro que uns e outros...
         Mas o melhor da festa é esperar por ela. Portanto, não desanime.
         Colha todas as esperanças e aventuras que puder. Cuidado com as abelhas. Vá em frente, com garbo e confiança – dê um tapa na surucucu, desvie da areia  movediça, não caia no abismo, chute jaguatirica, vá lá e mostre como se escapela uma ariranha. 
         Sempre me impressionou o doce destino dos heróis das histórias infantis, que, exilados em sombrias e longínquas florestas, conseguiram sobreviver, condignamente, alimentado-se apenas de raízes, cascas e frutas. Flores e sementes no café da manhã, naturalmente. Essa contracultura estomacal talvez explique a cara enfastiada, triste e fenestrada de Robinson Crusoé. Talvez...
         O Manual traz outro título que julgo útil e oportuno. Chama-se “Indígenas”. Primeiro esclarece sobre sinais e sintomas para o reconhecimento de tal espécime.
         A rigor, devo dizer que nesse particular o Manual é levemente impreciso.
         Li e reli, exaustivamente, essa parte mas, enquadro o porteiro do prédio e o dono da quitanda nas definições silvícolas do livro. Eu sei que tem mais gente nesse bolo mas não vou comprar briga de graça. O que vale, aqui e agora, é o ruidoso alerta do Manual: “Em presença de tais seres, não faça movimentos bruscos, seja cordial, não demonstre medo, nem empáfia.
         Convença-os a ajudá-lo: não exija, seja natural, descontraído coloquial, efusivo – mantenha permanente sorriso nos lábios, argumente, bata na mesma tecla, sem muita força é claro, implore, faça sinais de fumaça, mostre a carteira de seu clube de serviço, diga que o Brasil tem futuro, exponha suas idéias, não pise no tacape e antes que o pior aconteça, ponha alguns dólares na parada”.
         Nas entrelinhas dos epitáfios de muitos desbravadores é possível ler que os ditos cujos estão, prematuramente, sob lápides porque, afinal, não chegaram no preço. Mesmo em se tratando de índios, é bom ter algum trocado no fundo do bolso. De preferência moeda com valor cambial razoável. Sim, porque índio é tudo menos besta. A fase dos espelhinhos e dos apitos, pré-jesuítica, há muito já foi para o espaço e, dizem os entendidos, custará a voltar. Bons tempos aqueles... O advento da poupança múltipla, que, diga-se, já chegou às selvas, modificou, sobremaneira, a índole e a têmpera dessa boa gente dos brejais.
         Os índios que hoje gorjeiam não gorjeiam como dantes...
         E por aí segue o heróico Manual, dando leis e dicas de como sobreviver neste vale cheio de lágrimas e perigos. Permaneci na terra. Nem de longe me aventurei a penetrar nos intricados capítulos do mar e do ar.
         No chão mesmo, antes que o telefone toque, recebo outra indesprezível lição – “As mil e uma utilidades do pára-quedas”. Nunca imaginei que tanto se pudesse fazer com um pára-quedas em terra. Começo com a sugestão socialmente mais significativa – Faça de seu pára-quedas uma casa, ou quase isso. Prenda a geringonça em quatro pontos equidistantes, que podem ser galhos e pronto. Eis a sua casa!
         Pára-quedas de primeiro mundo tem a vantagem de já vir com as argolinhas próprias para esse fim. São mais largos, impermeáveis e não rasgam na primeira queda. Os de terceiro , justiça seja feita, muito têm servido para alegres e divertidas bolas de pano dos campeonatos de várzea.
         E fico pensando, aqui em baixo, nos patéticos e insolúveis problemas habitacionais de nosso querido povo. Fala BNH!... Esse sofrido povo que não tem onde esconder a cabeça, servindo de cobaia no laboratório das idealizações político-eleitorais dos governos, bem que poderia usufruir a comodidade e a praticidade de um pára-quedas amigo. Lar doce lar e um manual para educar... Galhos, onde prender? Esses não faltarão, com certeza.
         E assim o Domingo foi escorrendo pelos dedos do Manual. Pela janela o sol se punha atrás de dois mendigos que garimpam, no lixo, um pouco de comida e os restos de um pára-quedas de crueldade.
         Ao longo se vislumbra alguma humanidade! Pela porta aberta, o vento forte agita as samambaias, dobra as cortinas, esparrama os papéis, derruba o vaso e vira a página. Vira?
         Um dia virará...  

LEITE NO PORTÃO

      Ao entardecer, era hábito tocar-se por diante uma vaca ou duas, rua a fora, para ser, doce e calmamente, ordenhada ao gosto do freguês.
         Depois que o General Mac Arthur disse que “juventude não é um período da vida e sim um estado de espírito”, não temo contar certas experiências pessoais de antanho que, como quer, denunciam uma longa jornada de primaveras.
         Do alto dessa sacada juvenil, tão estranha no estilo quanto absoluta no conteúdo, é que falo de um fato visto, vivido, acontecido e provado, há mais de 40 anos.
         No tempo em que os paralelepípedos e o asfalto ainda não tinham rendido as ruas de terra, pois, até em volta da praça houve formidáveis “peludos”, em dia de chuva, vendia-se (quase dado) leite, de porta em porta, espumoso, quentinho, gostoso, saído a gosto, da genuína embalagem original. Ao entardecer, era hábito tocar-se uma vaca ou duas, rua a fora, para ser doce e calmamente ordenhada ao gosto do freguês.
         A caravana sempre muito lânguida, mas providente, ia parando aqui e ali, saciando a sede, a melancolia e a tradição de uns, outros e outros. Juro que um dia flagrei o sol do ocaso, aceso de curiosidade, fazendo tempo, atrasando a marcha, só para assistir a engraçada cena. Digo mais – doa a quem doer – que vi o astro-rei morrendo de rir, mais do que de entardecer, daquela vista insólita, muito humana.
         A nossa vaca era de uma mansidão patética. Cruzada de Normando, espatifava, lenta e ruidosamente, seus pesados cascos, rua a dentro, deixando um rastro de odor original e sábias pegadas. No portão armava-se o circo. Uma bandeja cheia de canecas vinha lá de dentro. Do lado de fora, a gurizada inquieta reinventava travessuras. No rigoroso limite de seus botões, no mínimo dois adultos, suficientemente sérios, punham ordem da farra. Meia dúzia de desocupados emprestavam brilho ao encontro.
         A vaca, imperturbável, bovinamente ruminava, enquanto o conhecido leiteiro, muito dono de sua função, multiplicava mãos, gestos e gentilezas. Um copo para o menino, uma caneca para a menina. Bastante espuma para um, menos para o outro. E assim morria o dia, de barriga cheia e alma vadia...
         Naquele tempo, servia-se leite de casa em casa, com vaca e tudo. Não havia saquinhos nem prazo de validade do produto. Era tudo feito de forma direta – sem intermediários ou subterfúgios...
         Eu conto o que sei, o que vi, e o que experimentei! Disso mais dirá o sol daquelas tardes, testemunha fidedigna dos fatos que relatei.
         Fala sol...! Se faltar o verbo, que fale a lua, a estrela, o corisco, a fada ou a fantasia...

CHAVES

       Não saberia dizer de onde nem quando surgiu essa necessidade humana de chavear-se por todos os lados, sob diversos pretextos. O fato é que cada um de nós poderia valer seu peso em chaves...
         Já repararam quanta chave cada um possui?
         É a do cofre, a da gaveta, do telefone, do carro, da casa, da caixa postal, da moto, do computador, da porteira, da geladeira, da mala, do armário, do gás, da loja, da bicicleta, da adega, da urna, do campanário, da despensa, do galpão, da gaita, do avião, do baú, do navio, do relógio, da luz, da cidade, do coração...
         Houve um tempo em que se pretendeu medir o poder de uma pessoa pelo número de chaves que portava. Nessa época, de tamanho sincretismo funcional, ter a chave significava possuir a resposta. Ter a chave era ter a saída. Resposta de quê? Saída para onde? Dizia-se que o rei reinava mas quem mandava, mesmo, era seu guarda-chaves. Era? Os que conviviam entre gemônias e masmorras sabiam bem que era.
         Na Idade Média, os famosos cintos de castidade, chaveados por todos os lados, batizaram um estilo de vida ainda hoje, plenamente, valorizado. Naquele tempo, os heróicos e ausentes cavaleiros das Cruzadas, entregavam as preciosas chaves a guardadores tão confiáveis quanto eunucos...
         Em pragmatismo sabiamente solenizado pela máxima – “reze mas mantenha o camelo bem amarrado” – varou os séculos para chegar íntegro até nós, pelo bem de todos e satisfação quase geral da nação.
         Atavismo moral não se discute – cumpre-se e seja o que Deus quiser...
         Chave – esse objeto de amor e do ódio, da crença e da dúvida, da satisfação e da frustração, do sim e do não, da ação e da omissão, do bem e do mal, do tudo e do talvez...
         Mas, então, busquemos a origem dessa engenhoca tão cara para nossa humanidade. Quem, afinal, são os inventores ou descobridores de tal prodígio?
         Todos sabemos que a fechadura foi inventada  pelos portugueses. Foi!
         E sobre isso não resta qualquer meia volta de dúvida.
         E a chave? Essa veio tempos depois provocando verdadeiro furor no contexto histórico-existencial da época. Há controvérsias. Alguns dizem que foram os ingleses que, enfim, aperfeiçoaram o ousado invento dos lusitanos. Outros afirmam que a chave foi, realmente, “inventada” por um raivoso e asfixiado batalhão de gregos, a bordo de um imenso, desajeitado e trancafiado cavalo de madeira, na famosa invasão de Tróia.
         Conta-se, até, que a hercúlea tarefa precisou de auxílio dos que estavam do lado de fora. Há crônicas febris da época, relatando a particular dificuldade para destrancar-se a porta do tal cavalo.
         Dizem os detalhistas que nessa oportunidade podem ter surgido, em boa hora, a utilitária chave de fenda e a esnobe chave inglesa.
         A história não entra em pormenores, mas não é difícil deduzir que a própria chave cachimbo foi devidamente usada na ocasião, oportunizando o ato solene de fumá-la, depois do percalço, a fim de consolidar e referenciar a grande paz.
         Guerras à parte, voltemos ao miolo da questão.
         Há chaves para todos os gostos e propósitos. Existem as de braço, as de pernas, as gramaticais, as sistemáticas, as genealógicas, as borboletas, as de boca, as de estrela, as  eletrônicas e tantas outras, de inestimável valia.
         A melhor cena teatral que testemunhei foi aquela do gigante que após arrombar a porta do reduto onde estava a indefesa mocinha, engole a chave com estilo, mastiga  a dita cuja com arte, e lança cúpidos olhares em direção à presa, inapelavelmente perdida. Observem a dimensão dessa atitude, cabalmente irrecorrível!
         Vendo bem, na vida real, tudo é assim – uns fecham e abrem e outros apenas passam, ou jamais passarão...
         O assunto é vasto e merece outros desdobramentos. De minha parte, devo dizer, que estou aqui, atônito, solitário, desamparado, procurando utilidade para uma diminuta chave que não sei onde se encaixará. É uma chave pequena, simples, bronzeada e de pouco peso. É de uma gaveta, descubro com alegria e esperança. O que contém essa gaveta? Dólares? Ações? Jóias? O segredo da eternidade? As respostas da felicidade?...
         Não!
         Dentro da gaveta há mais uma porção de chaves... E só!
         

ESCREVER

      A mórbida sanguessuga grudara-se, vagarosamente, na perna de Rita e um grito de medo/surpresa repicou nas suaves ondulações da lagoa.
         Um ventinho clássico, enrugando a tarde, fustigava a melena de Romário, estancando na barranca, de olho na bóia. Maria coçava, preguiçosamente, a palma da mão esquerda, campeando, no vazio, muitas luas para seu sonho de menina. Pitangas bravias tingiam a boca inexperiente de Lucas. Milena penteava-se com moleza e graça. Chico corria, obstinadamente, atrás de uma bola murcha. João quebrava gravetos com determinação e Pedro palitava os dentes com mansidão. Um bando de marrecas piadeiras pontilhava um tosco V no céu rosado e os galhos pendentes do velho salso choravam a morte de mais um dia de criação...
         Bem que esse poderia ser o bom começo de uma história simples, comum, promissora de emoções e repleta de qualidade humana. Esse flash de uma mera convivência familiar, espraiada em um dos milhares nichos de nossa rica e agredida natureza, poderia traduzir a grandeza das relações inter-pessoais embutida na misteriosa gruta do aleatório. O papel aceita tudo. Melhor dito, possibilidade extrema. Tal como no sonho, tudo pode acontecer. Escrever é destrancar cancelas existenciais e arregaçar entranhas emocionais, sem medos e sem culpas, para o que der e vier. Escrever é saltear tijoletas, pisando as desiguais, pulando linhas, num bailado tresloucado em busca de... liberdade.
         Escrever é vencer, sem tréguas, o soluço do corriqueiro. Escrever é desafiar, perigosamente, a suspeição do impossível...
         Na verdade, muito mais se exige na arte/ciência de escrever e convencer.
         A forma tem seu valor, mas o conteúdo é que realmente move e comove. A lógica não é imprescindível. A coerência é. O encadeamento é quase desprezível mas o comprometimento do contador é fundamental. Não basta narrar, é preciso sentir, se possível vivenciar, um tanto e um quanto do que se narra.
         O contador tem que sagrar suas próprias veias para revolucionar a alma do leitor. Escrever não é um ato impune. Escrever é a espontânea auto-condenação ao severo castigo em busca da expiação para a transcendência. Transcender é o limite para o ilimitado...
         Escrever é um meio e o fim será sempre incomensurável. No fundo, escrever é um tique subjetivo que toca o próximo pela semelhança ou pela imensa diferença sentimental ou circunstancial. O escrito é, no íntimo, o arrimo universal da inquietude das almas que crescem e por isso... padecem...!
         Escrever é a sufocação da mediocridade pelo supremo sopro da inspiração.
         Escrever é dedilhar estrelas, tanger nuvens e percutir o infinito.
         Escrever é o grito que a humanidade faz ecoar para viver e renascer.
         Esse o ato de escrever. E para os céticos ou desligados é bom que se diga que escrever é tudo isso e mais, porque será apenas loucura e insensatez pensar que o mundo na humanidade não será tão fundo, para sempre criar assombros – separando os dedos e juntando os ombros.
         Escrever é o sublime vício de liberdade... 

SABEDORIA PORTÁTIL

Sempre cultivei grande simpatia pela sabedoria condensada dos provérbios.
         A dimensão sinótica dos aforismos revela, de forma cabal e pronta, a maneira de ser, estar e sentir dos povos em suas aventureiras navegações, no largo e tortuoso mar das interações gerais.
         Gosto dessa sabedoria “fácil”, direta, objetiva, totalizada, globalizante e finalista. Não a julgo sob prisma crítico, apenas a aprecio. Entendo-s como sobejamente útil, funcional e gostosamente intrigante.
         Durante muito tempo só os almanaques nos abriam oportunidade de convivência com essa alegre (e sempre oportuna) erudição popular. Hoje, um livro bem engendrado me chega às mãos ao sabor do acaso. Li e reli a peça e não me perdoaria se não gerasse a chance de dividi-lo com meus apreciados leitores. É o que faço a seguir. Selecionei algumas. Percebam o condimento lógico das mensagens.
         “Melhor ser ruivo do que sem cabeça” – esse é irlandês. Os alemães dizem que “onde não há inimigo, há luta na certa”... Os italianos concluem – “quem tem amor no peito tem esporas nos flancos”. “No dia da vitória ninguém se cansa” dizem os árabes. Já os chineses recomendam – “deixe todo o mundo varrer a neve de sua porta, mas não se meta com a geada no telhado do vizinho...”
         Um espanhol, provavelmente basco, disse – “se eu morrer te perdôo, se não, veremos”. Na Pérsia dizia-se – “por uma orelha se escuta e pela outra se esquece”. Em sânscrito escreveu-se – “não é defeito do poste se o cego não o vê”. Os hindus sentenciam – “cada homem é guardião de sua própria honra”, enquanto os iugoslavos asseveram – “não é fácil encontrar o bem mas é fácil reconhecê-lo”. Os portugueses alertam – “por mais cedo que se acorde não se pode apressar a aurora”.
         Os gregos comentavam – “gato de luvas não pega ratos”. Os japoneses dizem – “é melhor uma boa ação perto de casa do que ir longe queimar incensos”.
         “O bajulador tem água numa mão e fogo na outra” – dizem os austríacos.
         “Na dúvida, fique onde está” – aconselham os ingleses. Os franceses são sutilmente picantes ao recomendarem – “tranque sua porta e preserve a honra de seu vizinho”. Os russos não poderiam ficar calados e certa feita disseram – “quem empresta um livro deveria ter uma mão cortada, quem o devolve, as duas”. “A segunda palavra provoca a briga” – observam os húngaros. E assim por diante. Verdadeiras jóias da sabedoria popular, perfeitamente assimiláveis e transportáveis, pois cabem no istmo de um soluço ou no entreato de um olhar.
         Gosto muito também das moleques variantes a respeito dos conhecidos e sovados provérbios, hoje já sem geografia e identidade nacional. “Onde há fumaça, o ar é irrespirável”, “Quem corre porque quer, não cansa – cansa os outros”, ou ainda: “o sol nasce para todos os telhados”. “O povo aumenta, não inventa, mas se contenta”. “Quem dá aos pobres fica com problemas de caixa”. “Quem tudo quer, paga mais e à vista”. “Em boca fechada não entra mosca, nem sai”. “Quem tem boca vai a Roma – quem não tem, sai...” Já os portugueses são enfáticos quando sinalizam: “Dize-me com quem andas e te direi quem te acompanha”.
         Dizem que o célebre Ibraim Sued, certa vez, ao concluir sua sábia locução, arremeteu um provérbio de conteúdo absoluto para não deixar dúvidas em seu comentário relativo. Disse: “...e a caravana passa enquanto os cães piam”. Alguém reclamou: “Cães ladram, não piam – ora pois”. Ao que Ibraim respondeu – “Os cães são meus e fazem o que eu mandar – ora pois”!
         Concluo invocando a sabedoria latina, jeitosamente portátil e reconhecidamente utilitária que diz: “As palavras voam, os escritos permanecem...”
         As editoras decidem. Decidem ou apenas lucram? A indagação não é proverbial mas bem que poderia ser...      

sexta-feira, 11 de março de 2011

O ESCRITOR

       Vinha de muito tempo aquela vontade de escrever coisas bonitas, cativantes e impressionantes. Parecia que vinha de outro mundo.
         Um dia, armou lápis e papel sobre a mesa de jantar e pôs-se a pensar. Enquanto as idéias não vinham, juntou as mãos e começou a brincar de fazer figuras de sombra na parede. Fez um coelho, depois um gato e logo em seguida um cachorro, brabo e rabão. O que era aquilo que aparecia, agora, na parede?... Seria um urso branco do pólo norte? Ou, simplesmente, um mico dourado da mata atlântica? Que nada – era apenas um cavalo velho, carregando um índio cansado, pampa a fora... Imaginação era o que não faltava. Uma rosa, abria seu botão na sombra da parede. E era azul!...
         Multiplicava imagens na tela improvisada mas nenhuma palavra povoava  o papel sobre a mesa. Tinha que pensar. Pensar e sentir. Conjecturar, inferir, refletir, arrancar, das alturas e das planuras, a inspiração capaz de aprisionar verbos, substantivos, adjetivos e advérbios em texto longo, lógico, convincente e belo. Como era difícil escrever! A tensão do querer multiplicava fantasmas. A disposição do fazer pulverizava o espírito e os assuntos perdiam gás e azo nos ângulos do espaço e nas quinas do tempo. E mais – perdiam sentido na nulidade do ambiente. Escrever o que se quer, para gosto de todos, com estilo, perseguindo a encomendação da glória na posteridade, é pesada e eleve, pró e contra, verídica e falsa, absoluta e relativa, inteira e repartida, solta e contida, soberana e submissa. É um meio termo justo, cuja sutileza traiçoeira, porém, abate a tantos na mira da ambivalência... Escrever é um ato médio, quase imponderável, que não limpa nem suja, que não prende nem liberta, que não mata nem cria, que não pacifica nem revolta, que não diz sim nem não, que não ama nem odeia, que não faz nem desfaz. Escrever é, rigorosamente, difícil. E o difícil não fica menos difícil depois de escrito.
         Se o mundo externo não provia inspiração suficiente, seria preciso buscá-la no universo interior – onde todos os astros têm luz própria e ainda não padecem o processo inexorável de auto-degradação. O interior é mais confiável. É?...
         Resolveu levantar e caminhar. Andou daqui pra lá – de lá pra cá. Sentou-se. Abriu um livro de Malba Tahan, acendeu um cigarro, cruzou as pernas, pegou seu mata-moscas, chutou o gato, assoviou a Marselhesa, quebrou o palito, acertou o relógio, pendurou os olhos no lustre cheio de teias de aranha e nada. Nenhuma palavra lhe vinha à cabeça para começar seu inesquecível escrito, definitivamente bonito, marcante, insinuante e cativante!
         Tudo tem sua hora. Pegou o lápis com decisão. Pegou-o com arte e convicção.
         Virou o papel, puxou a toalha para desfazer as rugas, olhou para a luz trêmula, respirou filosoficamente e escreveu: - “Eu”! Passou o lápis, mais uma vez, para deixar bem legível a palavra inicial, base de seu grande e eterno texto. Era um bom começo. Enquanto pensava na continuidade do escrito, desenhou, atoamente, uma árvore, nuvens e um sol de primavera. A árvore não mostrava raízes mas evidenciava ramos e galhos, impertinentes, que arranhavam os olhos do céu. Escrever era (e é) difícil...
         Riscou o “Eu” e escreveu, com decisão, “Nós”. Ao lado fez um círculo, depois um quadrado e mais uma figura sem forma convencional.
         Com certa raiva, num ímpeto, borrou tudo e escreveu “Ela”. Não estava bom. Apagou e escreveu “Vida”. Ou melhor – “A Vida”. Ou seria mais adequado “Uma Vida” ou “Essa vida”?...
         Na dúvida, resolveu amassar o papel, pegar outro e escrever: - “Apocalipse, parafernália, heliotropismo, teogonia, hermenêutica, pragmantismo, molduragem, rabdomancia, filigrana, etc”. Palavras que impressionam, mas, enfim, não dizem nada. Tudo em vão. Todo o esforço feito nada. Era preciso reagir. Vinha de muito longe essa vontade (quase imposição) de escrever coisas bonitas, cativantes e impressionantes. Era vital escrever, mas era severamente difícil.
         Parou, acalmou-se e pensou. Bateu asas e circundou o reduto de seu próprio eu, apreciando a paisagem doméstica e cotidiana dos sentimentos de sua circunstância literária. Sob um certo ponto de vista, não escrever seria mais significativo do que escrever. Calar comunicaria mais do que falar. Não dizer seria mais contundente do que dizer. Mesmo assim, apesar de tudo, resolveu arriscar e ousar – escreveria, custe o que custar, doa a quem doer. Pensou mais um pouco e então escreveu:
         “Sinto saudade de sentir saudade para poder escrever, saudoso, sobre a saudade que já senti e não escrevi ou esquecer da saudade que um dia escrevi e nunca senti...”

quinta-feira, 10 de março de 2011

CINCO MARIAS – O JOGO

Como se todas as contas da vida estivessem naquelas contas de pano e areia, Maria atirou-as para o alto, aceitando o jogo. Quando caíram nas frias tijoletas da varanda, sentou-se, com graça, para passá-las, uma a uma, pelo delicado arco de seus dedos. Para não bulir, passou a primeira, com arte. Era a Maria da inocência – menina dos balanços e das gangorras, das bonecas e das manhas, das tranças e das lembranças. Maria dos brinquedos e dos segredos, das balas e dos pirulitos, dos Pedrinhos e dos Carlitos, dos contos e das fadas, dos baús e das maletas, dos verões e dos condões. Um ponto de promissão...
A segunda passou por intuição. Era a Maria dos desejos e dos arpejos. Dos sonhos e das querências. Maria sem paciência – ardente, ingente, indecente. Maria dos pecados, moça dos bordados. Maria adolescente, inconsciente, inconsistente. Mulher de quatro lados – Maria do príncipe encantado, que a raptará, no fundo da noite, para seu castelo distante, em um cavalo alado. Um ponto da paixão...
A terceira passou como passam as águas da fonte pelos labirintos do riacho virgem. Era a Maria dos filhos e das lidas. Do fogão e da sofreguidão. Maria do lar e do mar que a imensidão navega sem rumo e... sem razão. Mulher dos deveres e dos afazeres. Dos aluviões e dos perdões. Maria das tinas e das rotinas. Dos trapos, dos farrapos e das incompreensões. Maria dos partos e das mamadeiras, das doenças e das contradições, das rezas e das ingratidões. Um ponto de procissão...
A quarta passou como passa o vento dos outonos pelos troncos das árvores que choram o desterro de suas folhas de verão. Era a Maria dos netos e dos bisnetos. Mulher compadecida, sofrida uma santa na beirada da vida, esperando, de braços abertos, o milagre da gratidão. Maria do perdão e da complacência. Da experiência e da penitência. Maria dos degredos e dos silêncios, dos contados e dos crochês, dos sibilos e dos vacilos, dos tropeços e das bengalas. Um ponto do perdão...
A quinta, Maria passará pelo delicado ardo dos dedos da vida no fim do jogo e dos tempos. É a Maria das almas e das crenças. Das ladainhas e das venerações. Dos juramentos e das remissões. Maria dos céus e dos véus, dos altares, dos nichos e das comiserações. Maria dos rosários e das orações, dos milagres e das assunções, das virtudes e das vicissitudes. Maria – simplesmente Maria. Mais um ponto de redenção...
Esse é o jogo – assim será o milagre. Essas as Marias de Deus e do Mundo. Mas, que jogo é esse? Cadê a magia?
Esse é o jogo do amor e a mágica do intento, é a grande sorte das contas de pano, areia e vocação que caem, uma a uma, nas frias tijoletas de uma varanda chamada paciência...
Contas para o alto – o jogo continuará. Quem viver, jogará...