quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Borzeguim

É noite fechada em Grotinhas do Socorro e as sombras do caminho dão frio na espinha. Bonifácio caminha aflito evitando os fantasmas do sossego, desviando os abismos do transcurso, pulando os desvãos da fantasia.
Já quase em casa abandonou-se aos perigos do descuido para lamber-se – enxugando sua própria adrenalina. “Basta – eu quero paz”... dizia para si, tentando restaurar sua consciência de tranqüilidade e integridade. Mais dois passos e estaria atrás de seu muro de proteção inviolável. Nesse exato momento – justo aí – cai, como um tronco morto dessas árvores que a vida desdenhou, um sujeito informe, vomitando ameaças, com um revólver na mão:
-É um assalto – fica quietinho. Vai passando a bolsa, a roupa, a jóia e o tênis...
-Não estou de tênis...
-Ué, por quê?? Todo o mundo usa tênis...
-Mas eu não gosto de tênis.
-Então, passa isso aí... O que é isso aí??...
-É um borzeguim...
-Que bicho é isso?...?
-É uma botina.
-O que é botina?...?
-É um sapato meia bota, que antigamente, a gente usava e...
-Pode parar. Não me enrola...
-Não. Claro que não. Só estava respondendo...
-Deixa pra lá. Me entrega a bolsa e a jóia.
-Não uso bolsa.
-Então me dá a carteira e o relógio.
-É do Paraguai...
-A carteira?
-Não, o relógio...
-Não quero. Passa a grana – fica com o relógio.
-Toma...
-Só isso?...?
-Espera aí – acho que tenho mais duas moedas neste outro bolso.
-Devagar, meu chapa – estou de olho. Qualquer movimento em falso e te apago.
-Calma, amigo – não vou reagir...
-Não sou teu amigo. Te acomoda. Vai passando o anel e a aliança.
-Não uso...
-Por quê?...?
-Ora, porque não sou casado e o anel de formatura já deixei lá no prego da Caixa Econômica...
-Que miséria! Chega! Tu tá me conversando...
-Juro que não – pode me revistar.
-Deixa pra lá. Me dá o que tu tem.
-Tenho este isqueiro.
-Eu não fumo...
-É folheado – coisa boa.
-Não quero – é muquirana.
-Leva o celular...
-Me dá – isso vale.
-É de cartão...
-Esquece – fica com ele.
-O que posso fazer por ti?...
-Nada – acho que vou te apagar e pronto.
-E o que ganhas com isso?...?
-Tudo e nada. Mas ninguém mais vai perder tempo contigo. Nada pra mim e tudo pela classe...
-Tu é quem sabe...
-Sei sim – vais morrer...
-Então manda bala – meus credores vão adorar...
-Vou te apagar mesmo, mas antes tu vai ter que me explicar o que é esse tal de “borzeguim”(?)...
-Tudo bem. Mas enquanto eu te explico vamos ali na esquina beber umas cervejas.
-Qual é, meu chapa? Tu acha que eu sou trouxa?
Tu vai me entregar...
-Nada disso. Até nem tenho para quem te entregar... Vamos tomar umas e outras – numa boa – só para descontrair...
-Ah, agora te peguei na mentira. Como vais pagar as “cevas” sem grana?...?
-Eu boto na conta. Fica frio – deixa comigo...
-Então vamos...
E tomaram meia dúzia de geladas enquanto um tentava explicar e o outro tentava entender o que era ou deixava de ser um “borzeguim”.
Quando pediram a conta, depois da décima, para remetê-la ao solene cabide do botequim, exclamaram solidariamente:
-Isto é um assalto!...!
O dono do bar, simpático e sempre muito solícito, explicou que a elevação dos preços estava por conta e risco do último pacote do governo. A suba da gasolina, a queda da bolsa,o FMI, a reforma fiscal, o Mercosul, os juros internacionais e a vó do Badanha encareceram a cerveja...
-Mas isso é um assalto...! – gritaram e espernearam, como bons cidadãos.
-Estamos todos no mesmo barco e vai morrer na praia...
E saíram abraçados, muito amigos, meio tontos mas suficientemente lúcidos para compreenderem que revólver não é vantagem quando a caneta faz pontaria...
Noite à dentro cantaram com entusiasmo e inocência:
-É o pacote...
-É o borzeguim...
-Esse pacote é um borzeguim!
-É o decote...
-É o arlequim...
-É um assalto...
-Vem do Planalto...!
-O que vai ser de mim?...?
E cantaram e rimaram madrugada à fora, assistidos por uma lua cheia e muitas barrigas vazias.
A lua, um dia, mudará. E as barrigas?...?

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