segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O Deficiente

Há pouco Rodrigues me telefonou, preocupado, dizendo que está ficando cego e surdo. Indaguei se tinha sido algum acidente, ou alguma, doença estranha e repentina??. Me disse que não sabe ao certo, mas o fato é que, de repente, “deixou de ouvir as batidas do relógio da Igreja; o apito do guarda-noturno; o canto do quero-quero da vizinha; o cachorro fantasma, latindo no terreno baldio; o cochicho dos namorados; a algazarra do feirante; a carroça do leiteiro; o alarde do sineiro; a cantoria do borracho; a gargalhada, a risada, o pouco juízo ecoando dentro da noite de verão. Não escuta mais a briga das lavadeiras, a sirene do colégio, a gritaria da gurizada,o salto do sapato, sério e firme, de dona Verônica, indo para a missa. Não ouve mais os passos perdidos do itinerante (ou será itinerrante?), não ouve o rádio da Isaura, nem o galo cantador, a corneta do soldado, o cavalo do tenente, a seresta, a festa, a boré da praça,o piano do conservatório, a tosse do vivente, o suspiro pelo ausente”...
Dei uma bruta risada e me preparei para explicar que “isso não era coisa grave”. E quando fiz aquela pausa própria dos que “sabem” e tem muito a dizer, Rodrigues atalhou, desatinado:
... “Estou cego, meu amigo: estou cego!...” – “Olha, ainda ontem dei uma volta por aí e não vi o Alfredo sentado no Café da Esquina, não enxerguei o pincenê do Silva, nem a bengala do Rômulo. Não vi a banda, nem a menina dos olhos e muito menos a rapariga requebrando. Não consegui ver o Cruzeiro do Sul que certamente foi sular outros pagos. Não vi o gato da Dulcinéia, nem o relógio no bolso, nem o padre na batina, nem a gravata de tope na vitrine. E onde está a manivela? E as luvas, o banco da praça, o palanque do político, o chapéu do Bonifácio, a mala do camelô, o tacho da cigana, a sorte e a esperança, a ilharga, o sobrolho, o pigarro? O que foi feito do tornozelo da Praxedes?”
Fiquei surpreso, parado, sem saber o que dizer. Mas Rodrigues que ainda não tinha ficado mudo, continuou:
... “Onde está a fumaça do trem? Cadê a poeira do Saci, o violão do Lima, o xadrez da Farmácia, a esmola do Lucrécio, a brilhantina do Thomaz, o trejeito do Jardélio, a homeopatia do Lifonso, o topete do Licurgo, o reclame do xarope, e a sacada da Vivinha”??...
Rodrigues estava muito excitado. Era preciso acalmá-lo. Mas ele não me deixava falar:
... “viste(?)... estou irremediavelmente surdo e cego – sou um deficiente – e agora??...”
-“Para aí, Rodrigues. Me escuta – presta a atenção: isso que está acontecendo contigo não tem nada de anormal – é passageiro, tudo perfeitamente explicável...”
Rodrigues interrompeu brusco para perguntar se eu estava vendo e ouvindo tudo aquilo que ele não mais via nem ouvia?
Só aí me dei conta que eu também tinha ficado meio surdo e meio cego...
Dissimulei como pude e tentei desenrolar a meada pela outra ponta.
-“Escuta, Rodrigues, não te deixa impressionar. Estás apenas um pouco confuso”.
Mas meu preocupado amigo, interrompeu, novamente aos gritos:
-“Alô! Quem fala?... alô?... Não estou ouvindo. Alô...?”
Resolvi desligar. Achei melhor uma conversa ao pé da orelha.
Decidi ir até a casa do Rodrigues. Quando abri a porta e olhei a noite, vi uma estrela cadente. Aproveitei e fiz, como se fazia antigamente, três pedidos, e, um deles era, naturalmente, por Rodrigues. Agora fico pensando: - “...era estrela cadente ou seria um satélite artificial, cansado da rotina??...”
O tempo dirá. Satélites não atendem pedidos... ou será que atendem??...

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