quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Chove!!...

Incomodado por formigas, empregados, impostos e visitas inoportunas o Velho Moraes, um dia, resolveu vender a chácara. Chamou o corretor de sua confiança e autorizou o negócio. Coisa de ímpeto – impulsiva – momento de raiva e desgosto. Dois dias depois estava profundamente arrependido da decisão.
Mas, palavra é palavra, e naquele tempo era usual honrar-se a palavra empenhada, deixou correr a sorte por conta das tratativas do talentoso intermediário.
Lá por uma tarde de domingo aparece um interessado comprador para revisar a mercadoria. O Velho Moraes, contrariadíssimo, recebeu o pretenso e começou a mostrar as “comodidades” da chácara.
-         “Linda mangueira” – comentou, com entusiasmo, o pretendente.
-         “Precisa de reparos” – disse, secamente, o proprietário.
-         “Mas não embarra (?)...”
-         “Quando chove é um chiqueiro”.
-         “E os aramados, seu Moraes?”
-         “Ah, estão quase todos no chão”.
-         “Bem, isso se conserta...”
O empregado caseiro que assistia a conversa-caminhada olhou nos olhos do patrão, meio surpreso, sem entender o que estava acontecendo, pois os arames tinham sofrido reparos, recentemente...
-         “E o galpão. Seu Moraes?”
-         “No galpão chove – mais no centro e menos nas pontas...”
-         “Mas não chove”. Comentou o caseiro, timidamente.
-         “Chove ! !” – disse o Velho, de forma categórica.
-         “Tem formiga aqui?”
-         “Não só aqui – estão em toda a parte...”
-         “E a água?”
-         “É escassa, turva e saloba”.
-         “Mas é bem doce” – disse, com voz sumida, o empregado.
-         “Saloba ! !” – contraponteou o Velho Moraes, transpirando
impaciência.
A essas alturas o comprador  já estava entre desanimado e desconfiado.
-         “E a casa?”
-         “A madeira tem que ser toda trocada. Chove no quarto, na sala e na
varanda”.
-         “E na cozinha também chove? – “indagou, sutil, o esperto
interessado esperando surpreender uma contradição.
-         “Na cozinha não chove” – falou alto o caseiro, já, decididamente,
amotinado.
-         “É, na cozinha não chove” – concordou o Velho Moraes
aparentemente resignado. – “Na cozinha a água brota do chão como se fosse um manancial...”
-         “E os vizinhos?”
-         “São bons quando estão dormindo”.
-         “E os impostos?”
-         “São caros. Estou vendendo a chácara para poder pagá-los”.
Esse foi o tiro de misericórdia na alegria do comprador. Despediu-se e tratou de sair rápido de cena.
O Velho Moraes satisfeito de não ter faltado com a palavra e não ter cometido a besteira de vender a chácara, voltou para seus afazeres cheio de vontade e disposição. Enquanto ordenava a capina das laranjeiras ouviu uma ligeira queixa de seu caseiro.
-         “Seu Moraes, a casa está precisando de telhado novo”.
-         “Por que?”
-         “Porque chove como na rua”.
-         “Mas na casa não chove”.
-         “Chove ! – os outros compradores tem que saber disso...”
-         “Então chove. Mês que vem vou dar um reforço no teu soldo...”
“Chove e é mal assombrada, seu Moraes... 

Tele-União

E porque Ela estava irritada com sua novela preferida fora do ar, Ele teve que agüentar todos aqueles desaforos, temperados a alho e óleo. E não ficou por aí: - houve um ruidoso festival de prantos, lamúrias, espernegadas, burundangas, enfim, toda espécie do melhor histerismo e muito quebra-quebra. Era o limite! Sua paciência, em tempos de saudosa memória, fora um verdadeiro mar de duzentas milhas – um espaço faraônico de tolerância. Agora tinha enchido os tubos. Tudo cansa e tudo fenece... Dobrou o jornal, levantou-se, com aquela calma própria dos estranguladores convictos, rumou, célere, para o armário, desenroscou, com medida violência – antecipando o que faria com o pescoço dela – a tampa do ordinário conhaque familiar. Sorveu dois tragos que lhe caíram lentos e grossos como os minutos que antecedem as decisões fatais...
Avançou! Enquanto caminhava, resoluto, na direção do destino, não reparou nos olhos contemplativamente inócuos de um Buda reescalpelado pela fúria de uma filosofia impune. Para o bem da humanidade, era preciso que notasse a compulsiva insistência do olhar do Buda, pela inefável composição das paralelas sociais.
O “Eu e o Nós”, um dia, em algum lugar, vão encontrar o ponto de tangência para todo o sempre e nunca mais. Mas ele não viu o Buda e isso, agora, não tem a menor importância. Seu pensamento e todos os sentidos estavam voltados para o que estava prestes a acontecer. Daí a segundos viveria, (ao vivo e a cores) aquele caso que acabara de ler na página policial de seu querido jornal. E aquela notícia não passaria de uma simples nota de mera ficção, depois que se consumasse tudo o que estava pronto para se consumar. Antegozou o duelo da imprensa para obter os melhores ângulos e os mais discutidos detalhes, foi tomado de uma irreprimível, não obstante secreta, satisfação de criar e perpetrar detalhes. Quebrou o elefante de porcelana barata, presente da vizinha, aquela chata que não parava de vizinhar... Ah, era a hora de acertar todas as contas – antigas, e recentes; reais ou irreais. Era a hora da verdade. Verdade que abortaria, de maneira até certo ponto legal, a liberdade tão desejada. Guardadas as proporções, o que estava por acontecer, era mais importante que a queda da Bastilha. E lá ia nosso Mirabeau de porta de mercearia falida, arrastando chinelos de liquidação, com uma barrica (centro nervoso de suas decisões) engolindo e triturando um surrado pijama, outrora listrado, disposto a resolver, de uma vez por todas, a proposição Shakespeareana: - “ser ou não ser”. Chegou, parou, mirou, ia agir – e ninguém dava por isso – quando, de repente: “plim, plim” – a televisão voltou ao éter e nosso amigo ao álcool.
Que remédio?!... Adeus vingança! Como seria possível resolver o drama familiar se a telinha exibia uma tragédia bem maior, mais rica e com mais pontos no Ibope?? Como poderia ser forte e decidido na frente daquele viscoso e desenvolto mocinho, repleto de virtudes e um charme de parar o trânsito?? Como chamar a atenção da esposa – sim, porque, pelas costas ele não mataria nem mosca, por uma questão de princípios – no meio daquela tórrida cena horizontal de beijos, abraços, queijos, melancias, etc?? Como executar o estrangulamento planejado (e merecido) em face do exposto em 29 polegadas de magia e êxtase?? Resolveu recolher-se a sua velha e carcomida insignificância. Buscou um lugar no sofá furado, ao lado da mulher, e voou, com ela, através da novela para um mundo que os olhos vêem e o bolso não sente... A televisão, enfim, mais uma vez, salvou uma vida e uniu dois corações. Pelo menos até os próximos comerciais... Para que??...

O rastro

A moderna técnica de vender tem muitos lados e diversos desdobramentos.
A melhor escola do ramo continua sendo a do Oriente Médio (judeus, árabes, gregos, turcos, etc), mas a mais sofisticada é a norte-americana, sem sombra de dúvidas. E é de lá que vem mais uma novidade.
Para engrossar o fantástico contexto do “marketing”, surge, agora, um artifício que ainda vai dar muito o que falar. Chama-se “rastreabilidade” do produto. Consiste em perseguir, acompanhar e monitorar a mercadoria no pós-venda, até sua “última morada”. Não basta vender – é preciso saber por que se vende, para quem se vende e o que efetivamente se vende. O objetivo é óbvio: - vender mais e vender sempre...
Não basta vender um carro, por exemplo. É útil “rastrear” a satisfação do cliente, as circunstâncias de uso, a dependência, os novos valores advindos do ato de adquirir e utilizar as inusitadas vantagens ou desvantagens do negócio, enfim – é preciso embarcar junto com a mercadoria para ver e conhecer o “prazer” do usuário/consumidor.
Definitivamente, terminou aquela história de “comprar só para se ver livre do vendedor”... Agora não é mais assim. Se você comprar uma lata de salsichas, pode esperar que amanhã estarão batendo em sua porta querendo saber o que você fez com elas (?)...
-         O sr. já comeu as salsichas?
-         Olha, eu comi umas duas e as outras dividi com o cachorro...
-         Aonde está o cachorro?
Pode acreditar que atrás das portas e das vitrines, embaixo dos tapetes, na dobrada das esquinas, sobre o telhado, atrás das cortinas, no sótão, no portão, no vestíbulo, na cozinha, dentro do armário, nos pingentes do lustre e dentro do Box, têm um exército de incansáveis e determinados “rastreadores” espionando suas reações e “acompanhando o produto”. Você, que acaba de adquirir um colchão, não se surpreenda se, na calada da noite, e no bom do sono, for, gentil e sutilmente, despertado só para responder uma meia dúzia de perguntinhas assaz oportunas e deveras importantes para o progresso mercadológico de nosso louco mundo consumista. Não se surpreenda!...
Tem gente rastreando preservativo! Tem...! Em que pese os eventuais constrangimentos, a nova técnica veio para ficar e se disseminar.
Fico imaginando a divertida ou perigosa situação de rastreamento de mercadorias menos ortodoxas tais como bombas-relógios, granadas, empadas de rodoviária, xaropes para tosse, anti-diarréicos, Chevette 84, gravatas-borboleta, papel H, grampos para cabelo, zíper, galochas, disco dos Abóboras, erva mate de pauzinho, relógios Rolex (com dois erres), caninha da boa, óculos rai-ban, calças brim coringa, uísque paraguaio, etc, etc.
Cá com meus botões, dou asas a imaginação só para acompanhar o esforço de rastreamento de um par de alpargatas compradas ontem pelo heróico Abedão, bem ali no singelo (e sortido) armazém do Anicleto. Já pensaram?...?
Abedão comprou (e pagou – uma em cima da outra) um par de alpargatas 42, cor preta, pedindo pé e cancha e um bom tempo para sová-las. Os atentos e resolutos rastreadores foram atrás. Logo observaram que Abedão, desavisadamente, pisou em algo inconveniente reforçando um clima cujo odor espantaria qualquer mortal. Depois, notaram que Abedão sequer tirava as ditas cujas nem para dormir. Mais adiante, constataram que o consumidor não as calçava por inteiro, preferindo usá-las, displicentemente, como chinelos, deixando liberto o garrão. No baile, testemunharam a presença das ditas alpargatas esfregando o chão naquela vanera baguala e, vez por outra, pisavam os pés da prenda e chutavam o xale da sogra. Na hora de bebericar uma “guaraná”, lá estava Abedão, com um pé na alpargata e o outro solto e feliz da vida. Os rastreadores estavam sobrando em contentamento com o desempenho do produto. Ali estava um consumidor feliz... Estava??...
Pois sim – quando percebeu que estava sendo escandalosamente, observado, Abedão não se fez de rogado: - Tirou um pé da 42 preta e sampou na orelha de um rastreador. A outra, encostou no nariz do companheiro intrometido, deixando-o desmaiado por muitos dias. E assim se conta a história dessa nova técnica de vendas que tem tudo para dar certo. Ah, se tem...! 

O regime

Não sei, ao certo, se a proposta era emagrecer dez quilos em noventa dias ou noventa quilos em dez dias (?)... o fato é que, finalmente, surgia, uma proposição séria, pertinente e lautamente exeqüível para o banimento definitivo daquelas perniciosas e incômodas gordurinhas denunciadas no fecho da calça, no botão da camisa, na mola do sofá, na estreitura da porta, na partilha do oxigênio, na amarração dos sapatos, no barulhão do mergulho, na ocupação das toalhas, nas pegadas na areia, na pulseira do relógio e por aí vai...
Tentara de tudo: - caminhadas, malhação em regra, pedaladas, spa, corridas noturnas, chá de losna, fibras, massagens, lipo-aspiração, fluídos, simpatias, carvão, hipnose, danças, gnose, bailados, halteres, corda de pular, patinetes, enfim, tudo.
Experimentara, inclusive, a conhecida e respeitada “dieta lunar”, tida e havida como tiro e queda. Pois o tal regime, que na verdade tinha lá seu fundo ligeiramente esotérico, eivado de misteriosa praticidade  e doída simplicidade, consistia, então, na mera e descarada decisão de “não comer”. Prático, simples e eficaz.
E a lua, onde entra nisso? – perguntarão, com sobrada razão.
Ora, como nada acontece de graça no imenso e complicado universo da vontade humana, seria (e é) necessário interpor um sutil derivativo, tão justo quanto, sobejamente, convincente para que tudo se satisfaça e nada regurgite: - contemplar a lua enquanto não se come e não comer enquanto se contempla a lua. Daí porque lunar...
E contemplar não será apenas olhar. Terá que, forçosamente, ser mais e melhor: - compreenderá filosofar, poetar, cantar, proclamar, delirar, gritar, praguejar e... enlouquecer!
A coisa, realmente, funciona “se” e “enquanto” persistir um severo esforço de auto-disciplina e farto senso de boa vontade.
Será fundamental que a dieta sobreviva mesmo em noites de lua oculta – imaginá-la, será decisivo – e, convenhamos, será grandemente útil, não ficar por ái pensando ou dizendo que a boa lua é aquela que mais parece um saboroso queijo suíço ou um bem fornido pão-de-ló da vovó...
Cá entre nós, que a lua lembra uma bela bolacha, ah, isso lembra!...
Simplesmente “não comer” não era o suficiente – era preciso um bom  motivo para jejuar. Fosse religioso, químico, político, estético, psicológico, endocrinológico – viesse de onde viesse – seria imprescindível a procedente motivação para desencadear guerra total e fulminante à indecorosa obesidade.
E agora surgiam, então, fazendo coro com outras descobertas prodigiosas da modernidade, as milagrosas pílulas do emagrecimento integral, limpo, sem efeitos colaterais, sem culpas, sem estrias, sem babados, sem rebuscos e sem riscados. Coisa de última geração. Uma por dia após o café – ou melhor, após um farto e bem nutrido café – seria mais que suficiente para processar o encanto de recompor a silhueta ao modelo idealizado.
E quantas idealizações se faz, de graça, nesse particular(?)...
Pois na esteira do Viagra, vinha fina a solução química para gordinhos e gordinhas, porque, afinal, de todos é o céu e de ninguém é a exclusiva benesse da leveza do ser...
Comprimidos de tirar a fome? Não, não e não. Depois de termos inventado a Internet, o ônibus espacial, a mega-sena, o fax, a banda cambial, o celular, a reeleição, a cirurgia endoscópica, o Walter Mercado, o Ratinho, o disc-laser, o plano real, a vacina anti-pólio, a Carla Peres, a parabólica, a cerveja em lata, o computador, a CPMF, a clonagem, a moratória, a soja transgênica, a camisinha, o bambolê, a realidade virtual, o pagode e o fio dental, seria improvável, tanto quanto sumariamente grotesco, repisarmos o caminho do simplismo vulgar. Não e não! A pílula do emagrecimento propõe emagrecimento direto – sem escalas e sem fricotes. Em seu âmago intermolecular possui comandos químicos poli-eficientes que interferem em nossos terminais psicossomáticos criando um clima de profunda interação comportamental de natureza político-carnavalesca que redundará em ação intra-atômica de redução absoluta no sentido da conversão peristáltica. Entenderam?...
Não importa. O que interessa saber é que as milagrosas pílulas farão mais pela dieta do emagrecimento do que as últimas medidas governamentais pelo regime sócio-econômico de nosso país.
Não acreditam? Tomem as pílulas; experimentem os comprimidos governamentais.
Comparem e verão. Quem viver – melhor dito – quem sobreviver, verá. Verá?...

A revisão

No tempo em que trabalhei no Diário de Notícias, como revisor, tive chance de conviver com tipos muito originais. Sem trocadilho.
         Meu colega de mesa, por exemplo, o João Julho, homem sessentão, um solitário, convicto, tinha sempre, na ponta da língua e na medida exata da oportunidade, um comentário evasivo, provocador e suficientemente desconcertante para destronar qualquer tédio de rotina.
         Do alto de suas inegociáveis galochas, apoiado em seu fiel guarda-chuva, dizia coisas do tipo:
-         “... enfim não choveu, nem deixou de chover...”
-         “Como assim, seu Julho?”
-         “Claro – em algum lugar deve ter chovido. Aqui não foi, está visto! Ou será que não?...”
-         “Mas então onde choveu, seu Julho?”
-         “Ao certo não sei, mas bem pode ter sido atrás da Cortina... Por que não?”
Quem saberá?”...
Naquele tempo (68) convivíamos com a “guerra fria” e a “Cortina de Ferro” escondia o temido inimigo da liberdade e dos bons costumes.
Mas era original – “diferente” – curtir uma secreta e codificada simpatia pelos “doces horrores” perpetrados atrás da Cortina. Seu Julho quase não conseguia disfarçar essa simpatia. Eu o chamava de “lobo da estepe”, mais para compara-lo ao personagem descrito por Hesse do que situa-lo, politicamente na geleira comunista da então União Soviética. Ele, de fato, não levava jeito para engrossar a militância bolchevista. Não lhe faltavam idéias mas lhe faltava temperamento e explosão de gestos para a composição do levante.
Levava quase meia hora para consumir meio biscoito doce e sorver seu cafezinho. Que revolução seria tão paciente??...
Certa feita, comentei que pretendia concretizar um intento pessoal antes do fim do mês. Seu Julho aduziu, só para provocar: - “Fim do mês é aquilo que sempre chega antes do salário e geralmente depois de uma necessidade  e outra”...
Um outro, o Hermeto, revisor de mão cheia, detetive nas horas vagas (e eram tantas), dava um brilho especial ao nosso trabalho. Baixinho, troncudo, mãos de estivador e olhos de águia. Tinha o dom de desentocar os mais estranhos erros camuflados no interior de densos e enfadonhos textos. Para mim caiam os artigos de fundo – Alceu Amoroso Lima, Maurício C. de Lacerda, Dom Vicente Sherer, editoriais e outros. Para tranqüilidade geral da Nação sempre os repassava para o pente fino de Hermeto, que, satisfeito com a amiga solicitação, redobrava a dedicação e atenção. Ao fim do repasse geralmente levantava o polegar direito, lá do fundo da sala, para informar que estava tudo ok.
O expediente começava lento pois as linotipos (e os linotipistas) ainda não estavam suficientemente quentes. Depois do primeiro lanche, que também não estava ainda quente, o serviço atropelava até o encerramento. As tiras de provas amontoavam-se em nossas mesas como se fossem serpentinas de um tresloucado carnaval de letras desafiando a quietude da lógica. E aí, de tudo acontecia. Uma letra, vírgula, um ponto, um parágrafo poderiam mudar a história. Naquela época tomávamos cuidado especialíssimo com o “s” e o “ç”. Era tempo de cassar e caçar...  
A subversão também estava solta – e qualquer descuido nosso poderia ser entendido com subversivo ou sub-verssivo, como lautamente argumentou seu Julho na hora do terceiro cafezinho.
De qualquer forma, tomávamos cuidado extra nas páginas políticas. Nossa redobrada atenção conseguiu evitar disparates do tipo: - “Descarga elétrica ilumina operário”. A palavra certa elimina, é óbvio.
-         “Cai do oitavo andar e sobrevoa”. O titulista queria dizer sobrevive mas o linotipista, cansado, deixou-se vencer pelo lirismo de sua magia infantil.
Nessa época de tantos sonhos e projetos eu tentava afeiçoar o eixo de meu pensamento jogando-me a testa e barriga nas águas profundas e frias da teoria Freudiana. O sumário dos “atos falhos” – um verdadeiro universo de transversas e complicadas interpretações – me dava o referencial para julgar e... condenar. Ninguém errava por acaso... A intenção, embora inconsciente, era intenção e portando vontade.
Meu senso crítico formatava-se pelo estilo e pela essência da assumição sem desculpas. Exatamente por isso submetia meu julgamento a uma disciplina perigosamente psico-mecanicista. Os erros e as falhas revelavam a verdadeira (e suspeita) vontade do errado. Essa posição estressava minha cabeça. Hoje, depois de tantas (e bem-vindas) bordoadas da vida e do tempo, vejo que existe muito mais mundo do que se pode imaginar entre a língua e o céu da boca. Que mundo desconhecido existirá entre o céu e a terra?...
Naquela época, devo confessar, eu era muito severo em minhas correções.
Estava sempre disposto a chamar a prontidão de uma porção de fiscais azedamente paranóicos. E os erros e as falhas (vejo hoje) eram alegres e faceiros deslizes que corriam por conta da canseira geral e da pressão da tarefa, em especial.
Pois a canseira e a pressão geravam legendas raras e absolutamente insofismáveis.
-         “Flu enfrenta Fla no Maracaná”, “Noiva mata noivo e se marta”.
-         Desembarcador     acata embarcos da Cia. de Navegação”.
-         Lente sobe e compromete salúrio múnimo”. Leia-se Leite.
-         Pente aniquila Etiópia”. As cabeças rolam na Etiópia por causa da peste e não do pente – está visto.
A revisão do Diário era um mundo à parte. Meu compromisso terminava a uma da manhã. Voltava para casa, excitadíssimo, e cheio de histórias para contar. No parapeito dessa explosão estava o amigo Weimann, fiel colega de pensão, com sua sensibilidade de prontidão para aplainar os nós de minha confusão. E saíamos para a noite mundo a fora em busca de respostas... A aventureira jornada suscitava infinidade de outras perguntas.
Quem somos?  Onde estamos?
Que comida comemos? Que água bebemos? Que amores amamos?
O que sabemos? Por que? Para que? Como? Onde? Quando?
Diante de muros tamanhos só nos restava voltar e... revisar...
Weimann seria médico e eu um modesto contador de causos.
Esse destino não precisa de revisão – está rigorosamente correto e justo.
Está?... “Craro quue ssim, hora pois, hentão”...
Revisar será sempre útil e oportuno._”Revizar e pressizo”_.

A última palavra

Houve um tempo em que os pais tinham a última palavra em casa. Decidiam horários, comportamentos, amizades e preferências dos filhos. Sem exclusão de afeto, os lares eram sólidos centros de disciplina.
         Algumas exceções ainda resistem, bravamente, neste “moderno” mundo de tantas alforrias. E ninguém perdeu pedaço por isso...
         Não havia uma supressão de vontades, apenas orientação tutelada, ou como quer a psicologia eufemística, uma liberdade vigiada.
         A educação vinha de casa e se completava na escola, no quartel, no trabalho e na vida.
         Feliz ou infelizmente, os tempos foram mudando a ordem desses fatores e isso tem mudado o resultado na equação da convivência humana. Hoje a vida ocupa o lugar de frente nessa vasta fila histórico-educacional.
         Mas, não é a vida conceituada por Bias ou classificada por Darwin. Nem a idealizada por Platão ou objetivada por Myra y Lopes. É uma outra que acontece acidentalmente, de maneira rigorosamente virtual e fetichista. Desce pela inconseqüência e se projeta nas telinhas. Tem cor aleatória e cheira a pó... Resmunga intolerância, respira egoísmo e fala agressividade. É uma vida que come vantagens pessoais e se tapa com os cobertores da anarquia. E assim é...
         Mas, a história que quero contar é menos tensa e mais palatável.
         Quando os tempos começaram a mudar, um amigo, com filhos para criar, começou, muito sabiamente, um pertinente trabalho de adaptação à nova ordem das coisas. Sabia que seria impossível lutar contra o novo mundo, brutalmente globalizado. O que ele dizia ou determinava em casa era rápida e sorrateiramente desmentido ou contrariado no mundo lá fora. Os filhos ouviam suas preleções, mas não podiam refratar os novos (e subversivos) comandos da existência extra-lar. O conflito era inevitável... Mas era decisivo ficar com a última palavra – fosse do jeito que fosse.
         Certa vez, o filhos mais velho, no olho de seu furacão adolescente, preparava-se para um passeio noturno. Meu amigo percebeu as intenções do guri e resolveu meter sua colher nessa liberalidade. Sentindo que a simples proibição era perda de tempo, puxou a carteira e alcançou “algum” ao filhote, num gesto de carinhoso provimento paternal e estratégico escudo do movimento seguinte:


-         Vais dar uma volta?
-         Vou, respondeu, com topete, o monossílabo adolescente em plena e extrema crise existencial.
-         Tudo bem. Dez horas de volta em casa...!
-         Qual é, pô (?...?) – tô chegando às doze e pencas...
Para não perder todo o sofrido e heróico quinhão de sua superioridade, o pobre pai não teve outra saída senão fazer valer sua última e respeitável palavra de chefe do lar e da família:
-         Então, não me passe das doze e pencas...!

Firmina Pedrosa

Do fundo brilhante

Da história uma
Vida ditosa vibra,
Resplandece airosa,
Formosa, poderosa,
Vistosa!
É Firmina Pedrosa,
Com seus ares, seus ais,
suas madeixas – mulher
Primorosa, dengosa, manhosa.
É ela a rainha –
A vinha dos desejos
A sinhá dos arpejos,
A dama garbosa.
Ah! Firmina Pedrosa –
Ruidosa, lustrosa, nervosa,
Caridosa, venturosa – escandalosa!
Quem és tu, Firmina?
De onde vens Pedrosa?
Para onde vais, mimosa?
Quem és tu – fêmea sedosa?

Em que jardim floresceste,
Rosa maravilhosa?
Por que és tão famosa?

Oh! Firmina Pedrosa.
Que te cantem em verso
E prosa.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Corversas.Com 1

- E sabe do que mais: “ o nada inexiste!” - Isso é teoria ou pretexto?
- Ué, por que?
- Porque se é teoria depende de provação, adeptos e seguidores. E isso leva tempos. E tempos são afeitos a mudanças que, na verdade, só ocorrem com o tempo.
Portanto – se é teoria, que seja!
Isso não muda a vida, o mundo,o clima, nem o humor. Mas se é pretexto o assunto fica mais complicado. Esse pretexto é desculpa esfarrapada para fazer de tudo para não fazer nada. E pior - não fazendo nada, se faz tudo, porque, enfim o teu “nada inexiste”...
- O que? Afinal o que estás conversando?
- Nada!
- É, mas eu ouvi Tudo.

João Se Sobra

De repente sobrou faca e facão por todo lado. As mulheres correram para o canto e os machos caíram na briga.
Os ferros tiniam no meio do salão. Um grito de pára - tem gente ferida no chão- estancou a baderna. Perto do gaiteiro estava Se Sobra furado de muitas pontas e a vida escorrendo pela mão.
- Traz pano e salmoura...
- Que desastre!
- Não morre, João!
- Se Sobra , não mor...
Em volta, compadecidos todos fizeram o sinal da cruz!
Fizeram com a mão esquerda porque na direita tinham as facas sujas de sangue – verde e amarelo.

Paixão

De passada, aos trambulhões alguém me disse que paixão nada mais é que um vulcão em uma ilha cheia de náufrago bêbados - de paixão.
Daqui me parece uma ilha de náufragos cheia de vulcões bêbados. De paixão?
Pelo sim, pelo não, paixão há ser um pobre náufrago repleto de vulcões em uma ilha bêbada – de paixão.
E por que não?

Saudade

Ah, a saudade, essa invasora, fez seu ninho no canto dos olhos, bica seus frutos de angústia nas rugas da testa e na fonte das lágrimas se sacia cotidiana e silenciosamente.
Essa ingrata semeou nas linhas da mão calejada o segredo que desarma a bomba das lembranças.
É preciso desarmá-la, com urgência. Mas de que jeito?
Trêmulas mãos que não me deixam ler suas linhas... ou serão meus olhos que tremulam incomodados com a intrusa inquilina?
Que tormento! Já sei - vou sufocá-la até não mais ouvir um só estertor. Como farei?
Cerrarei os olhos – para sempre, para sempre...