No tempo em que trabalhei no Diário de Notícias, como revisor, tive chance de conviver com tipos muito originais. Sem trocadilho.
Meu colega de mesa, por exemplo, o João Julho, homem sessentão, um solitário, convicto, tinha sempre, na ponta da língua e na medida exata da oportunidade, um comentário evasivo, provocador e suficientemente desconcertante para destronar qualquer tédio de rotina.
Do alto de suas inegociáveis galochas, apoiado em seu fiel guarda-chuva, dizia coisas do tipo:
- “... enfim não choveu, nem deixou de chover...”
- “Como assim, seu Julho?”
- “Claro – em algum lugar deve ter chovido. Aqui não foi, está visto! Ou será que não?...”
- “Mas então onde choveu, seu Julho?”
- “Ao certo não sei, mas bem pode ter sido atrás da Cortina... Por que não?”
Quem saberá?”...
Naquele tempo (68) convivíamos com a “guerra fria” e a “Cortina de Ferro” escondia o temido inimigo da liberdade e dos bons costumes.
Mas era original – “diferente” – curtir uma secreta e codificada simpatia pelos “doces horrores” perpetrados atrás da Cortina. Seu Julho quase não conseguia disfarçar essa simpatia. Eu o chamava de “lobo da estepe”, mais para compara-lo ao personagem descrito por Hesse do que situa-lo, politicamente na geleira comunista da então União Soviética. Ele, de fato, não levava jeito para engrossar a militância bolchevista. Não lhe faltavam idéias mas lhe faltava temperamento e explosão de gestos para a composição do levante.
Levava quase meia hora para consumir meio biscoito doce e sorver seu cafezinho. Que revolução seria tão paciente??...
Certa feita, comentei que pretendia concretizar um intento pessoal antes do fim do mês. Seu Julho aduziu, só para provocar: - “Fim do mês é aquilo que sempre chega antes do salário e geralmente depois de uma necessidade e outra”...
Um outro, o Hermeto, revisor de mão cheia, detetive nas horas vagas (e eram tantas), dava um brilho especial ao nosso trabalho. Baixinho, troncudo, mãos de estivador e olhos de águia. Tinha o dom de desentocar os mais estranhos erros camuflados no interior de densos e enfadonhos textos. Para mim caiam os artigos de fundo – Alceu Amoroso Lima, Maurício C. de Lacerda, Dom Vicente Sherer, editoriais e outros. Para tranqüilidade geral da Nação sempre os repassava para o pente fino de Hermeto, que, satisfeito com a amiga solicitação, redobrava a dedicação e atenção. Ao fim do repasse geralmente levantava o polegar direito, lá do fundo da sala, para informar que estava tudo ok.
O expediente começava lento pois as linotipos (e os linotipistas) ainda não estavam suficientemente quentes. Depois do primeiro lanche, que também não estava ainda quente, o serviço atropelava até o encerramento. As tiras de provas amontoavam-se em nossas mesas como se fossem serpentinas de um tresloucado carnaval de letras desafiando a quietude da lógica. E aí, de tudo acontecia. Uma letra, vírgula, um ponto, um parágrafo poderiam mudar a história. Naquela época tomávamos cuidado especialíssimo com o “s” e o “ç”. Era tempo de cassar e caçar...
A subversão também estava solta – e qualquer descuido nosso poderia ser entendido com subversivo ou sub-verssivo, como lautamente argumentou seu Julho na hora do terceiro cafezinho.
De qualquer forma, tomávamos cuidado extra nas páginas políticas. Nossa redobrada atenção conseguiu evitar disparates do tipo: - “Descarga elétrica ilumina operário”. A palavra certa elimina, é óbvio.
- “Cai do oitavo andar e sobrevoa”. O titulista queria dizer sobrevive mas o linotipista, cansado, deixou-se vencer pelo lirismo de sua magia infantil.
Nessa época de tantos sonhos e projetos eu tentava afeiçoar o eixo de meu pensamento jogando-me a testa e barriga nas águas profundas e frias da teoria Freudiana. O sumário dos “atos falhos” – um verdadeiro universo de transversas e complicadas interpretações – me dava o referencial para julgar e... condenar. Ninguém errava por acaso... A intenção, embora inconsciente, era intenção e portando vontade.
Meu senso crítico formatava-se pelo estilo e pela essência da assumição sem desculpas. Exatamente por isso submetia meu julgamento a uma disciplina perigosamente psico-mecanicista. Os erros e as falhas revelavam a verdadeira (e suspeita) vontade do errado. Essa posição estressava minha cabeça. Hoje, depois de tantas (e bem-vindas) bordoadas da vida e do tempo, vejo que existe muito mais mundo do que se pode imaginar entre a língua e o céu da boca. Que mundo desconhecido existirá entre o céu e a terra?...
Naquela época, devo confessar, eu era muito severo em minhas correções.
Estava sempre disposto a chamar a prontidão de uma porção de fiscais azedamente paranóicos. E os erros e as falhas (vejo hoje) eram alegres e faceiros deslizes que corriam por conta da canseira geral e da pressão da tarefa, em especial.
Pois a canseira e a pressão geravam legendas raras e absolutamente insofismáveis.
- “Flu enfrenta Fla no Maracaná”, “Noiva mata noivo e se marta”.
- “Desembarcador acata embarcos da Cia. de Navegação”.
- “Lente sobe e compromete salúrio múnimo”. Leia-se Leite.
- “Pente aniquila Etiópia”. As cabeças rolam na Etiópia por causa da peste e não do pente – está visto.
A revisão do Diário era um mundo à parte. Meu compromisso terminava a uma da manhã. Voltava para casa, excitadíssimo, e cheio de histórias para contar. No parapeito dessa explosão estava o amigo Weimann, fiel colega de pensão, com sua sensibilidade de prontidão para aplainar os nós de minha confusão. E saíamos para a noite mundo a fora em busca de respostas... A aventureira jornada suscitava infinidade de outras perguntas.
Quem somos? Onde estamos?
Que comida comemos? Que água bebemos? Que amores amamos?
O que sabemos? Por que? Para que? Como? Onde? Quando?
Diante de muros tamanhos só nos restava voltar e... revisar...
Weimann seria médico e eu um modesto contador de causos.
Esse destino não precisa de revisão – está rigorosamente correto e justo.
Está?... “Craro quue ssim, hora pois, hentão”...
Revisar será sempre útil e oportuno._”Revizar e pressizo”_.
Nenhum comentário:
Postar um comentário