quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Tele-União

E porque Ela estava irritada com sua novela preferida fora do ar, Ele teve que agüentar todos aqueles desaforos, temperados a alho e óleo. E não ficou por aí: - houve um ruidoso festival de prantos, lamúrias, espernegadas, burundangas, enfim, toda espécie do melhor histerismo e muito quebra-quebra. Era o limite! Sua paciência, em tempos de saudosa memória, fora um verdadeiro mar de duzentas milhas – um espaço faraônico de tolerância. Agora tinha enchido os tubos. Tudo cansa e tudo fenece... Dobrou o jornal, levantou-se, com aquela calma própria dos estranguladores convictos, rumou, célere, para o armário, desenroscou, com medida violência – antecipando o que faria com o pescoço dela – a tampa do ordinário conhaque familiar. Sorveu dois tragos que lhe caíram lentos e grossos como os minutos que antecedem as decisões fatais...
Avançou! Enquanto caminhava, resoluto, na direção do destino, não reparou nos olhos contemplativamente inócuos de um Buda reescalpelado pela fúria de uma filosofia impune. Para o bem da humanidade, era preciso que notasse a compulsiva insistência do olhar do Buda, pela inefável composição das paralelas sociais.
O “Eu e o Nós”, um dia, em algum lugar, vão encontrar o ponto de tangência para todo o sempre e nunca mais. Mas ele não viu o Buda e isso, agora, não tem a menor importância. Seu pensamento e todos os sentidos estavam voltados para o que estava prestes a acontecer. Daí a segundos viveria, (ao vivo e a cores) aquele caso que acabara de ler na página policial de seu querido jornal. E aquela notícia não passaria de uma simples nota de mera ficção, depois que se consumasse tudo o que estava pronto para se consumar. Antegozou o duelo da imprensa para obter os melhores ângulos e os mais discutidos detalhes, foi tomado de uma irreprimível, não obstante secreta, satisfação de criar e perpetrar detalhes. Quebrou o elefante de porcelana barata, presente da vizinha, aquela chata que não parava de vizinhar... Ah, era a hora de acertar todas as contas – antigas, e recentes; reais ou irreais. Era a hora da verdade. Verdade que abortaria, de maneira até certo ponto legal, a liberdade tão desejada. Guardadas as proporções, o que estava por acontecer, era mais importante que a queda da Bastilha. E lá ia nosso Mirabeau de porta de mercearia falida, arrastando chinelos de liquidação, com uma barrica (centro nervoso de suas decisões) engolindo e triturando um surrado pijama, outrora listrado, disposto a resolver, de uma vez por todas, a proposição Shakespeareana: - “ser ou não ser”. Chegou, parou, mirou, ia agir – e ninguém dava por isso – quando, de repente: “plim, plim” – a televisão voltou ao éter e nosso amigo ao álcool.
Que remédio?!... Adeus vingança! Como seria possível resolver o drama familiar se a telinha exibia uma tragédia bem maior, mais rica e com mais pontos no Ibope?? Como poderia ser forte e decidido na frente daquele viscoso e desenvolto mocinho, repleto de virtudes e um charme de parar o trânsito?? Como chamar a atenção da esposa – sim, porque, pelas costas ele não mataria nem mosca, por uma questão de princípios – no meio daquela tórrida cena horizontal de beijos, abraços, queijos, melancias, etc?? Como executar o estrangulamento planejado (e merecido) em face do exposto em 29 polegadas de magia e êxtase?? Resolveu recolher-se a sua velha e carcomida insignificância. Buscou um lugar no sofá furado, ao lado da mulher, e voou, com ela, através da novela para um mundo que os olhos vêem e o bolso não sente... A televisão, enfim, mais uma vez, salvou uma vida e uniu dois corações. Pelo menos até os próximos comerciais... Para que??...

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