quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O leão de Andrócles

Das muitas histórias ouvidas na infância, lembro de uma que tem o prodigioso poder de sempre atualizar-se pela qualidade intrínseca de sua grata mensagem: - fala de amor, simplicidade, liberdade e “gratidão”.

Conta-se que Andrócles, um modestíssimo escravo grego, perseguido pelas legiões romanas, refugiou-se nas cavernas. Lá dentro, um grande leão urrava de dor porque um incômodo espinho cravara-se em uma de suas patas. Andrócles fugia dos romanos, caverna a dentro, dividindo seu espaço com o leão ferido.

De que lado estava o perigo maior??

Do lado de fora, perderia sua liberdade, certamente. Do lado de dentro, corria o risco de perder a vida. Vida ou liberdade?...?

Obedecendo o imperativo de seu sutil entendimento humano, que jamais despoja-se da sagração da dignidade, resolveu perder a vida pois, - “vida sem liberdade, não vale nada...”

Aproximou-se da fera – até porque não restava outra alternativa – e vencendo o medo, pronto para ser, sumariamente, devorado, desentranhou o formidável espinho que castigava o animal.

Milagre dos milagres – o leão não só não o atacou mas, como num “gesto” de gratidão, lambeu, carinhosamente, a mão de seu benfeitor. Os tempos passaram e Andrócles, finalmente, foi capturado. Levado para Roma para engrossar a multidão dos desvalidos, cumpriu tarefas de humilhação até ser jogado no meio da arena, ao sabor dos leões famintos e ferozes. Tudo isso para gozo e festa de um povo insatisfeito que vivia de favor, com pão e circo.

Quando Andrócles preparou-se para morrer, precocemente, pela segunda vez, eis que outro milagre aparece, desafiando a ordem.

Sob a gritaria histérica da platéia, um dos leões avança, decidido, na direção do grego. Fome e ferocidade era o que se lia nos olhos da fera... O espetáculo valeria a entrada!

Surpreendentemente o leão aninha-se como gato manso e lambe, com suavidade, os pés do escravo. Posta-se em sua guarda para defendê-lo contra tudo e contra todos. O povo quer sangue. O Imperador quer decisão. Aplausos de um lado – vaias de outro – Roma precisa sobrepujar. Um batalhão bem armado entra em cena para resolver a questão. Com ferros e força mata o leão e o escravo.

Pela primeira vez o povo não aplaudiu o ato. E assim, começa a cair o Império que julgava ter se erigido para todo o sempre.

Modernamente, essa história não tem leões mas tem outras feras igualmente famintas e perigosas povoando as cavernas insalubres da periferia de pessoas miserentas, seres incompreendidos, cidadãos marginalizados, mães solteiras, pais alcoolizados, humanos brutalizados – verdadeiros leões transpassados por penosos espinhos sociais...

De certa forma, estamos todos no meio dessas arenas condenatórias à espera do enfrentamento, para riso e delírio dos governos incompetentes.

Quantos de nós podem esperar a “gratidão” e a fidelidade desses “leões de Andrócles”...??

Quem anda por aí, no ermo das tocas urbanas, sob a índole da caridade e da liberdade, arrancando espinhos sociais, tem direito de alimentar alguma esperança de, um dia, poder sobreviver para, enfim, resgatar a dignidade humanitária para si ou para a posteridade.

Quem não anda – que ponha mais uma tranca na porta para resguardar mais uma culpa na consciência...

Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástica produção de textos...que merecem ser lidos por muita gente e, claro, muito me orgulham. Um super abraço. José Luiz