segunda-feira, 14 de março de 2011

ESCREVER

      A mórbida sanguessuga grudara-se, vagarosamente, na perna de Rita e um grito de medo/surpresa repicou nas suaves ondulações da lagoa.
         Um ventinho clássico, enrugando a tarde, fustigava a melena de Romário, estancando na barranca, de olho na bóia. Maria coçava, preguiçosamente, a palma da mão esquerda, campeando, no vazio, muitas luas para seu sonho de menina. Pitangas bravias tingiam a boca inexperiente de Lucas. Milena penteava-se com moleza e graça. Chico corria, obstinadamente, atrás de uma bola murcha. João quebrava gravetos com determinação e Pedro palitava os dentes com mansidão. Um bando de marrecas piadeiras pontilhava um tosco V no céu rosado e os galhos pendentes do velho salso choravam a morte de mais um dia de criação...
         Bem que esse poderia ser o bom começo de uma história simples, comum, promissora de emoções e repleta de qualidade humana. Esse flash de uma mera convivência familiar, espraiada em um dos milhares nichos de nossa rica e agredida natureza, poderia traduzir a grandeza das relações inter-pessoais embutida na misteriosa gruta do aleatório. O papel aceita tudo. Melhor dito, possibilidade extrema. Tal como no sonho, tudo pode acontecer. Escrever é destrancar cancelas existenciais e arregaçar entranhas emocionais, sem medos e sem culpas, para o que der e vier. Escrever é saltear tijoletas, pisando as desiguais, pulando linhas, num bailado tresloucado em busca de... liberdade.
         Escrever é vencer, sem tréguas, o soluço do corriqueiro. Escrever é desafiar, perigosamente, a suspeição do impossível...
         Na verdade, muito mais se exige na arte/ciência de escrever e convencer.
         A forma tem seu valor, mas o conteúdo é que realmente move e comove. A lógica não é imprescindível. A coerência é. O encadeamento é quase desprezível mas o comprometimento do contador é fundamental. Não basta narrar, é preciso sentir, se possível vivenciar, um tanto e um quanto do que se narra.
         O contador tem que sagrar suas próprias veias para revolucionar a alma do leitor. Escrever não é um ato impune. Escrever é a espontânea auto-condenação ao severo castigo em busca da expiação para a transcendência. Transcender é o limite para o ilimitado...
         Escrever é um meio e o fim será sempre incomensurável. No fundo, escrever é um tique subjetivo que toca o próximo pela semelhança ou pela imensa diferença sentimental ou circunstancial. O escrito é, no íntimo, o arrimo universal da inquietude das almas que crescem e por isso... padecem...!
         Escrever é a sufocação da mediocridade pelo supremo sopro da inspiração.
         Escrever é dedilhar estrelas, tanger nuvens e percutir o infinito.
         Escrever é o grito que a humanidade faz ecoar para viver e renascer.
         Esse o ato de escrever. E para os céticos ou desligados é bom que se diga que escrever é tudo isso e mais, porque será apenas loucura e insensatez pensar que o mundo na humanidade não será tão fundo, para sempre criar assombros – separando os dedos e juntando os ombros.
         Escrever é o sublime vício de liberdade... 

Nenhum comentário: