segunda-feira, 14 de março de 2011

O PODE

       Quando então despertei para a irrecusável febre itinerante que, enfim, acomete qualquer mortal pecador, já era o ônibus o grande senhor das distâncias, fazendo a ponte das idas e vindas nesta vida cheia de encontros e desencontros. Há quarenta anos minha geração despedia-se, melancolicamente, das travessias em pesados e ferrosos trens a diesel.
         Das locomotivas a carvão – fumegantes e pardacentas, lembro vagamente. Hoje as recoloco nos trilhos da lembrança, por conta das  histórias e vicissitudes vividas por meus pais. Com imensa saudade do que nunca vivenciei plenamente, recolho, agora, algumas informações sobre as penosas ou divertidas viagens no velho, ruidoso e cheiroso Maria Fumaça.
         São muitos os causos que se perenizam nas silenciosas curvas do tempo, mas um me chamou especial atenção. Contam-me que, em cada Estação, cuja chegada sempre era uma difícil conquista, ouvia-se entremeada por vozes de estafa, gritos quituteiros eivados de balaiadas, ferros tinindo e o sopro abismal das máquinas – o comando diferenciado, altissonante, da autoridade condutora que, à distância, parecia dizer – “Bode”...!
         Mas, que “bode” seria tão grande e tão presente capaz de obstaculizar o percurso ou destravar a viagem?...
-         “Bode”? – era a pergunta ressoada nas cantoneiras da distante e solitária Estação, engolida pela imensa geografia do percurso.
-         “Bode”? – respondiam de lá – desde as entranhas enfumaçadas da verdade.
-         “Bode”? Inquiria, uma vez mais, a diletância de pilotagem escrupulosa.
-         “Bode”! – confirmava o fantasma das nebulosas decisões do destino... E assim, seguia resfolegando o trem, na segurança de seu dolente compasso, comendo trilhos campo a fora.
Mas que “bode” era esse que, afinal, comandava a cena, pipocando estrada a dentro, chancelando paisagens e despetalando lonjuras?...
Seria o bode expiatório? Ou seria o primo do bom cabrito que não berra? Será que era o doador de sangue, em holocausto, para honra e glória de Deus da viagem? Que bode era...?
Com a maturidade do espírito e do ouvido, descobriu-se que não era um “bode” e sim um “pode”...
O que se dizia, então, era: - “Pode”...!
Pode o quê? Pode quanto? Ora! Pode continuar.
Essa era a sutil continuidade da jornada, cuja segmentação era vital, ajustada e afeita ao prodígio do prosseguimento da viagem.
O “pode” era a permissão nominal, técnica e política da grande jornada, em nível e razoável segurança e aceitável comodidade, O “pode” significava mais que uma licença – era a garantia de que nada e ninguém vinha em sentido contrário para empacar, empanar, toldar ou espatifar a rota célere e barulhenta do trem.
Era bem mais que isso, segundo nossa dedução pela ótica moderna dos questionamentos comportamentais – era o livre conduto e a porteira aberta, depois de aferidas as condições e circunstâncias sócio-econômicas e regimentais da carga viva ou inerte transportadas pelo heróico comboio. Do alto do terceiro milênio, essa história aparece e parece vigorosamente, estranha. Os critérios da permissão de ontem, certamente, não são os mesmos perpetrados hoje. Que “podes” balizam nossos exercícios de ir e vir neste vale cheio de dúvidas? Que “podes” comandam nossas itinerâncias neste contexto de ser e saber, no vasto universo globalizado do ter e subverter? Que trilhos nos aguardam nessa ânsia perspectiva dos valores, convenientemente funcionais? Que valor, peso e decisão tem o “pode” em nosso moderno e permissivo mundo de trilhos transversos e estações aleatórias? Que “pode” podiam nossos ancestrais e que “pode” podemos nós?... Que permissão tinham eles e que permissividade temos nós?...
Algo me diz que um vasto trem de razões vai trombar com nossa condução social para gerar um desastre memorável. E isso será um grande e irrecusável “bode”.
Pode...! 

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