segunda-feira, 14 de março de 2011

LEITE NO PORTÃO

      Ao entardecer, era hábito tocar-se por diante uma vaca ou duas, rua a fora, para ser, doce e calmamente, ordenhada ao gosto do freguês.
         Depois que o General Mac Arthur disse que “juventude não é um período da vida e sim um estado de espírito”, não temo contar certas experiências pessoais de antanho que, como quer, denunciam uma longa jornada de primaveras.
         Do alto dessa sacada juvenil, tão estranha no estilo quanto absoluta no conteúdo, é que falo de um fato visto, vivido, acontecido e provado, há mais de 40 anos.
         No tempo em que os paralelepípedos e o asfalto ainda não tinham rendido as ruas de terra, pois, até em volta da praça houve formidáveis “peludos”, em dia de chuva, vendia-se (quase dado) leite, de porta em porta, espumoso, quentinho, gostoso, saído a gosto, da genuína embalagem original. Ao entardecer, era hábito tocar-se uma vaca ou duas, rua a fora, para ser doce e calmamente ordenhada ao gosto do freguês.
         A caravana sempre muito lânguida, mas providente, ia parando aqui e ali, saciando a sede, a melancolia e a tradição de uns, outros e outros. Juro que um dia flagrei o sol do ocaso, aceso de curiosidade, fazendo tempo, atrasando a marcha, só para assistir a engraçada cena. Digo mais – doa a quem doer – que vi o astro-rei morrendo de rir, mais do que de entardecer, daquela vista insólita, muito humana.
         A nossa vaca era de uma mansidão patética. Cruzada de Normando, espatifava, lenta e ruidosamente, seus pesados cascos, rua a dentro, deixando um rastro de odor original e sábias pegadas. No portão armava-se o circo. Uma bandeja cheia de canecas vinha lá de dentro. Do lado de fora, a gurizada inquieta reinventava travessuras. No rigoroso limite de seus botões, no mínimo dois adultos, suficientemente sérios, punham ordem da farra. Meia dúzia de desocupados emprestavam brilho ao encontro.
         A vaca, imperturbável, bovinamente ruminava, enquanto o conhecido leiteiro, muito dono de sua função, multiplicava mãos, gestos e gentilezas. Um copo para o menino, uma caneca para a menina. Bastante espuma para um, menos para o outro. E assim morria o dia, de barriga cheia e alma vadia...
         Naquele tempo, servia-se leite de casa em casa, com vaca e tudo. Não havia saquinhos nem prazo de validade do produto. Era tudo feito de forma direta – sem intermediários ou subterfúgios...
         Eu conto o que sei, o que vi, e o que experimentei! Disso mais dirá o sol daquelas tardes, testemunha fidedigna dos fatos que relatei.
         Fala sol...! Se faltar o verbo, que fale a lua, a estrela, o corisco, a fada ou a fantasia...

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