segunda-feira, 14 de março de 2011

O MANUAL E A SOBREVIVÊNCIA

        Camuflado entre as leituras acidentais de fim-de-semana, estava o “Manual de Sobrevivência” em terra, mar e ar, presente de um prezado amigo.
         Não confundi-lo com o “Diário do Sobrevivente”. Imagino que a sutil diferença entre um e outro é, no mínimo, um belo galo na testa...
         Pois o “Manual de Sobrevivência” – vade mecum obrigatório de destemidos aventureiros, que ainda conseguem driblar a vigilância da psiquiatria de plantão – lá estava, tal qual um dicionário, com todos os informes necessários para o supremo desafio de resistência em habitats estranhos e ligeiramente hostis.
         No capítulo das coisas comestíveis em plena selva virgem (perdoem o anacronismo do Manual), há até saborosas receitas que incluem raízes de jalapão ao molho de formigas do brejo. Cuidado! Só valem as de pinta roxa. Medalhões de jaguarandi, guarnecido por folhas de macambira regados ao caldo de pitanga. Uma verdadeira delícia!
         Se a fome estiver naquele ponto incontrolável, a recomendação é uma refeição mais densa e substanciosa. A sugestão do chef poderá ser ensopado de sucuri, peito de onça gratinado, ou rabo de jacaré frito. Como entrada, cai bem uma generosa salada de peucédanos vivos e broto de urtigão.
         Um verdadeiro manjar dos deuses...
         Visto está que este banquete é tão apetitoso quanto perigoso – por isso, convém não perder de vista o pé de página do Manual que, em tempo, aconselha – “olho vivo e pé ligeiro”. Em letras quase ilegíveis ainda reforça – “será sempre saudável guardar bem as costas”...
         Portanto, o gourmet que tiver o real interesse de preservar-se vivo, falante e saltitante, deverá não esquecer de ser rápido e rasteiro ou... precisamente, mais rápido e mais rasteiro que uns e outros...
         Mas o melhor da festa é esperar por ela. Portanto, não desanime.
         Colha todas as esperanças e aventuras que puder. Cuidado com as abelhas. Vá em frente, com garbo e confiança – dê um tapa na surucucu, desvie da areia  movediça, não caia no abismo, chute jaguatirica, vá lá e mostre como se escapela uma ariranha. 
         Sempre me impressionou o doce destino dos heróis das histórias infantis, que, exilados em sombrias e longínquas florestas, conseguiram sobreviver, condignamente, alimentado-se apenas de raízes, cascas e frutas. Flores e sementes no café da manhã, naturalmente. Essa contracultura estomacal talvez explique a cara enfastiada, triste e fenestrada de Robinson Crusoé. Talvez...
         O Manual traz outro título que julgo útil e oportuno. Chama-se “Indígenas”. Primeiro esclarece sobre sinais e sintomas para o reconhecimento de tal espécime.
         A rigor, devo dizer que nesse particular o Manual é levemente impreciso.
         Li e reli, exaustivamente, essa parte mas, enquadro o porteiro do prédio e o dono da quitanda nas definições silvícolas do livro. Eu sei que tem mais gente nesse bolo mas não vou comprar briga de graça. O que vale, aqui e agora, é o ruidoso alerta do Manual: “Em presença de tais seres, não faça movimentos bruscos, seja cordial, não demonstre medo, nem empáfia.
         Convença-os a ajudá-lo: não exija, seja natural, descontraído coloquial, efusivo – mantenha permanente sorriso nos lábios, argumente, bata na mesma tecla, sem muita força é claro, implore, faça sinais de fumaça, mostre a carteira de seu clube de serviço, diga que o Brasil tem futuro, exponha suas idéias, não pise no tacape e antes que o pior aconteça, ponha alguns dólares na parada”.
         Nas entrelinhas dos epitáfios de muitos desbravadores é possível ler que os ditos cujos estão, prematuramente, sob lápides porque, afinal, não chegaram no preço. Mesmo em se tratando de índios, é bom ter algum trocado no fundo do bolso. De preferência moeda com valor cambial razoável. Sim, porque índio é tudo menos besta. A fase dos espelhinhos e dos apitos, pré-jesuítica, há muito já foi para o espaço e, dizem os entendidos, custará a voltar. Bons tempos aqueles... O advento da poupança múltipla, que, diga-se, já chegou às selvas, modificou, sobremaneira, a índole e a têmpera dessa boa gente dos brejais.
         Os índios que hoje gorjeiam não gorjeiam como dantes...
         E por aí segue o heróico Manual, dando leis e dicas de como sobreviver neste vale cheio de lágrimas e perigos. Permaneci na terra. Nem de longe me aventurei a penetrar nos intricados capítulos do mar e do ar.
         No chão mesmo, antes que o telefone toque, recebo outra indesprezível lição – “As mil e uma utilidades do pára-quedas”. Nunca imaginei que tanto se pudesse fazer com um pára-quedas em terra. Começo com a sugestão socialmente mais significativa – Faça de seu pára-quedas uma casa, ou quase isso. Prenda a geringonça em quatro pontos equidistantes, que podem ser galhos e pronto. Eis a sua casa!
         Pára-quedas de primeiro mundo tem a vantagem de já vir com as argolinhas próprias para esse fim. São mais largos, impermeáveis e não rasgam na primeira queda. Os de terceiro , justiça seja feita, muito têm servido para alegres e divertidas bolas de pano dos campeonatos de várzea.
         E fico pensando, aqui em baixo, nos patéticos e insolúveis problemas habitacionais de nosso querido povo. Fala BNH!... Esse sofrido povo que não tem onde esconder a cabeça, servindo de cobaia no laboratório das idealizações político-eleitorais dos governos, bem que poderia usufruir a comodidade e a praticidade de um pára-quedas amigo. Lar doce lar e um manual para educar... Galhos, onde prender? Esses não faltarão, com certeza.
         E assim o Domingo foi escorrendo pelos dedos do Manual. Pela janela o sol se punha atrás de dois mendigos que garimpam, no lixo, um pouco de comida e os restos de um pára-quedas de crueldade.
         Ao longo se vislumbra alguma humanidade! Pela porta aberta, o vento forte agita as samambaias, dobra as cortinas, esparrama os papéis, derruba o vaso e vira a página. Vira?
         Um dia virará...  

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