sexta-feira, 11 de março de 2011

O ESCRITOR

       Vinha de muito tempo aquela vontade de escrever coisas bonitas, cativantes e impressionantes. Parecia que vinha de outro mundo.
         Um dia, armou lápis e papel sobre a mesa de jantar e pôs-se a pensar. Enquanto as idéias não vinham, juntou as mãos e começou a brincar de fazer figuras de sombra na parede. Fez um coelho, depois um gato e logo em seguida um cachorro, brabo e rabão. O que era aquilo que aparecia, agora, na parede?... Seria um urso branco do pólo norte? Ou, simplesmente, um mico dourado da mata atlântica? Que nada – era apenas um cavalo velho, carregando um índio cansado, pampa a fora... Imaginação era o que não faltava. Uma rosa, abria seu botão na sombra da parede. E era azul!...
         Multiplicava imagens na tela improvisada mas nenhuma palavra povoava  o papel sobre a mesa. Tinha que pensar. Pensar e sentir. Conjecturar, inferir, refletir, arrancar, das alturas e das planuras, a inspiração capaz de aprisionar verbos, substantivos, adjetivos e advérbios em texto longo, lógico, convincente e belo. Como era difícil escrever! A tensão do querer multiplicava fantasmas. A disposição do fazer pulverizava o espírito e os assuntos perdiam gás e azo nos ângulos do espaço e nas quinas do tempo. E mais – perdiam sentido na nulidade do ambiente. Escrever o que se quer, para gosto de todos, com estilo, perseguindo a encomendação da glória na posteridade, é pesada e eleve, pró e contra, verídica e falsa, absoluta e relativa, inteira e repartida, solta e contida, soberana e submissa. É um meio termo justo, cuja sutileza traiçoeira, porém, abate a tantos na mira da ambivalência... Escrever é um ato médio, quase imponderável, que não limpa nem suja, que não prende nem liberta, que não mata nem cria, que não pacifica nem revolta, que não diz sim nem não, que não ama nem odeia, que não faz nem desfaz. Escrever é, rigorosamente, difícil. E o difícil não fica menos difícil depois de escrito.
         Se o mundo externo não provia inspiração suficiente, seria preciso buscá-la no universo interior – onde todos os astros têm luz própria e ainda não padecem o processo inexorável de auto-degradação. O interior é mais confiável. É?...
         Resolveu levantar e caminhar. Andou daqui pra lá – de lá pra cá. Sentou-se. Abriu um livro de Malba Tahan, acendeu um cigarro, cruzou as pernas, pegou seu mata-moscas, chutou o gato, assoviou a Marselhesa, quebrou o palito, acertou o relógio, pendurou os olhos no lustre cheio de teias de aranha e nada. Nenhuma palavra lhe vinha à cabeça para começar seu inesquecível escrito, definitivamente bonito, marcante, insinuante e cativante!
         Tudo tem sua hora. Pegou o lápis com decisão. Pegou-o com arte e convicção.
         Virou o papel, puxou a toalha para desfazer as rugas, olhou para a luz trêmula, respirou filosoficamente e escreveu: - “Eu”! Passou o lápis, mais uma vez, para deixar bem legível a palavra inicial, base de seu grande e eterno texto. Era um bom começo. Enquanto pensava na continuidade do escrito, desenhou, atoamente, uma árvore, nuvens e um sol de primavera. A árvore não mostrava raízes mas evidenciava ramos e galhos, impertinentes, que arranhavam os olhos do céu. Escrever era (e é) difícil...
         Riscou o “Eu” e escreveu, com decisão, “Nós”. Ao lado fez um círculo, depois um quadrado e mais uma figura sem forma convencional.
         Com certa raiva, num ímpeto, borrou tudo e escreveu “Ela”. Não estava bom. Apagou e escreveu “Vida”. Ou melhor – “A Vida”. Ou seria mais adequado “Uma Vida” ou “Essa vida”?...
         Na dúvida, resolveu amassar o papel, pegar outro e escrever: - “Apocalipse, parafernália, heliotropismo, teogonia, hermenêutica, pragmantismo, molduragem, rabdomancia, filigrana, etc”. Palavras que impressionam, mas, enfim, não dizem nada. Tudo em vão. Todo o esforço feito nada. Era preciso reagir. Vinha de muito longe essa vontade (quase imposição) de escrever coisas bonitas, cativantes e impressionantes. Era vital escrever, mas era severamente difícil.
         Parou, acalmou-se e pensou. Bateu asas e circundou o reduto de seu próprio eu, apreciando a paisagem doméstica e cotidiana dos sentimentos de sua circunstância literária. Sob um certo ponto de vista, não escrever seria mais significativo do que escrever. Calar comunicaria mais do que falar. Não dizer seria mais contundente do que dizer. Mesmo assim, apesar de tudo, resolveu arriscar e ousar – escreveria, custe o que custar, doa a quem doer. Pensou mais um pouco e então escreveu:
         “Sinto saudade de sentir saudade para poder escrever, saudoso, sobre a saudade que já senti e não escrevi ou esquecer da saudade que um dia escrevi e nunca senti...”

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