terça-feira, 17 de maio de 2011

AS TIJOLETAS DE LAU

Quando as coisas ficaram pretas, Laudelino pulou do barco da normalidade e saiu por aí, dando braçadas ao léu da sorte. Quem passasse na praça, a qualquer hora do dia ou da noite, poderia assistir, de graça, as passadas tresloucadas desse cristão, pulando tijoletas, numa coreografia intrigante e contagiante.
Mais conhecido por Lau, proprietário de uma fisionomia carismática, maltrapilho, ostentando uma verruga na testa, uma gravata cor-de-rosa e uma cartola surrada, fazia a alegria de uns e o constrangimento de outros.
Um jornalistazinho do pequeno semanário do lugar, pretendendo tornar-se grande em sua nobre missão profissional, um dia decidiu entrevistar o popular Laudelino Quaresma Calçada. Pensava, isto sim, na notoriedade que a iniciativa lhe traria, considerando a raridade da matéria e o inusitado conteúdo da reportagem, de olhos presos em prováveis apreciações positivas, pairantes bem além do jardim. Era possível até que o escorreito e atento grupo dos Direitos Humanos guinasse suas atenções para a contundente entrevista e aportasse, de mala e cuia, no povinho, para ver de perto o fenômeno que, afinal, também lhe dizia respeito. E assim fez.
-         Nome?
-         Lau...
É oportuno que se diga que Laudelino recitava o próprio apelido com audível dificuldade em função de uma contratempo funcional não raro à maior parte do povo desta Pátria amada idolatrada, salve, salve. Acontece que o pobre Lau há muito tinha perdido mais de dois terços dos dentes, e sua boca encachaçada comprometia boa pronúncia, nos palcos da razão e do bom entendimento.
-         Como?...
-         Lau, ora!
-         Certo, certo. Por favor, poderias parar um pouquinho para podermos conversar...?
-         Não posso parar!...
-         Então, como vou poder te entrevistar?
-         O quê?... e lá ia Lau, pulando e pulando, divertidamente.
O deslumbrado jornalistazinho não teve outra alternativa senão ir atrás, ensaiando pulinhos a contragosto.
-         Quero uma entrevista, certo?...
-         O que é entrevista?
-         Uma conversa entre amigos, para o jornal...
-         Ali no banco tem jornal...
-         Está bem. Já vi. Mas estou falando de outro assunto.
E vá pulos de lá pra cá, daqui pra lá...
-         Tens família?
-         Quê?...
-         Família: - mulher, filhos, pai, mãe, essas coisas...
-         Lau tem chapéu!...
-         E família, tens?...
-         Lau tem gravata...
-         Tudo bem. Por que pulas as tijoletas?
-         Tisoletas – o que é tisoletas?
-         Isso aí... Poderíamos parar um pouco? Já estou cansado.
-         Lau não tá cansado...
-         Eu falo das tijoletas do passeio público, da calçada...
-         Meu nome é Carçada...
-         Isso eu sei. O que quero saber é por que o senhor anda por aí pulando tijoletas...
-         I eu sei?
-         Ah, então o senhor não sabe?...
-         Si subesse eu contaria pro senhô...
-         Então fale de sua vida.
-         Vida?...
-         Isso mesmo. Sua vida. Seus amores, sua ocupação, sua casa, seus ideais, suas emoções e suas razões.
-         Ih, moço, essa conversa é chata...
-         Tudo bem, então fale de seu passado. De onde você veio? Como? Quando? Por que?...
-         Moço, me dá uns trocado?... Me dá?...
-         Te dou. Mas tem uma condição – pára de pular para podermos conversar direito.
-         Nada feito, não posso parar...
-         Então, está bem. Vamos continuar pulando. Que graça tem isso?...
-         Graça?... Pule moço. Aí não – o senhô queimo a linha...
-         Que linha? É tudo igual...
-         Não é, não senhô! Tem as preta, tem as vermeia, tem as branca...
-         Não estou vendo diferença...
-         Olhe daqui, olhe daqui...
-         Não vejo nada.
-         Pule mais que o senhô vai vê.
-         Estou pulando.
-         Pule, pule, moço.
-         Estou pulando...
-         Mais alto, mais alto, moço.
-         Pronto! Bem alto! (acho que não vou agüentar...)
-         Agora sim, tá vendo...?
-         É, acho que estou...
-         Viu...? Tem as preta, as vermeia, e tem as branca...
-         Tijoletas?...
-         Não interessa o quê – importante é a diferença... que a gente vê!
-         É mesmo. Olha ali uma amarela...
-         Onde? Onde?...
-         Ali! Perto da roxa, na frente da marrom...
-         O senhô aprendeu ligeiro...
-         Olha ali outra, cor-de-burro-quando-foge...
-         Onde?
-         Ali, ao lado daquela que tem a cor do cavalo branco de Napoleão...
-         Terminou o brinquedo. Pra mim chega. Saí...
-         Vem pular, Lau, vem! Agora está ficando boa a farra...
-         To fora!
-         Então tchau! Olha aquela outra ali, cor de abacate da serra. Ih, queimei a linha... Olha esta aqui cor de avestruz no ninho... Vou dar um saltão naquela outra cor de político que não cumpre promessa. Aquela não me escapa, não me escapa, vou pular, pulei! Essa verde bandeira é difícil de pular... Vem pular, Lau, vem!
E assim se conta essa história, para que nunca se diga que a convicção não possa, um dia, enlouquecer em holocausto de uma boa causa.
Que causa?
A causa da imaginação, que prega tijoletas coloridas na vasta e promissora senda dos idealistas saltitantes em busca da verdade e... da liberdade.
Para que?
Ora! Para pular tijoletas, intrigando uns, contagiando outros...
            Vem pular, Lau, vem!...

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