terça-feira, 17 de maio de 2011

O BAR DO RATO

Sempre que podia e sempre podia, Afonsinho dava uma passada no bar do Rato, para refrescar as idéias e inteirar-se dos fatos. Lá, a conversa era, diariamente, ou melhor, noturnamente, muito animada.
Futebol, política, religião, conjuntura, etc, não só eram assuntos permitidos como quase obrigatórios. Um balcão e quatro paredes encerravam um solene parlatório neutro, gratuito e rigorosamente isento para passar-se a limpo a Pátria, os patriotas, a humanidade, o céu e a terra.
Naquela noite, quando Afonsinho chegou, a temperatura já estava alta. O assunto centrava-se nessa dolorosa questão da fome e da miséria. Com a palavra e com a cerveja, estava Quiri, muito de pé e nada à vontade, fazendo sua doutrinação, já com vários apartes para atender:
-         Isso é obrigação do governo...
-         O governo mal pode com suas próprias calças, vai poder com um problemão desse tamanho? – comentou, criticamente, o ex-sargento Caçamba, a essas alturas quase na diagonal, no meio da cena.
-         Tem que poder – retemperou, sabiamente, Dr. Camalhoso, estendido em seu canto, atrás de seu reluzente anel de bacharel aposentado.
-         Tem que poder, concordo com o doutor, pra isso recolhe os impostos – atravessou Sinaleira, muito convicto, enquanto recarregava as químicas de seu estranho guaraná.
Afonsinho, recém chegado, ainda fora do clima, quis falar, mas foi cortado pela voz fina e penetrante de Silvério, respeitado e conhecido ex-oficial de justiça, com muitos mandados na conta.
-         Não tiro a razão do meu doutor, mas acho que nós todos temos a obrigação de dar uma ajuda a essa pobre miserável. Temos que fazer a nossa parte.
-         Que parte? Que obrigação? – saltou, enfurecido, Mofão, ex-candidato a muitos mandatos na Câmara de Vereadores, até então ocupado com seu sanduíche.
-         A parte de fazer o que o governo não faz – enfim, pôde falar Afonsinho.
-         Então temos que juntar forças para obrigar o Governo a fazer o que ele tem o dever de fazer e não faz – disse, vagabundamente, Joaquim, do alto de sua tranqüilidade, gerada no imponderável espaço compreendido entre um copo de caipira e um cigarro amigo.
-         Temos é que organizar a sociedade para um eficaz e decisivo combate à miséria – se soltou Afonsinho. Se formos esperar pelas providências governamentais melhor então acreditarmos que as galinhas um dia terão dentes.
-         Em véspera de eleições, eles se mexem – comentou Quiri.
-         Se nós fizermos a parte do Governo, seria justo que o Governo fizesse a nossa – falou mais uma vez, com ênfase, Dr. Camalhoso, em tom professoral.
-         As elites que põem e tiram os governos é que devem assumir essa responsabilidade – disse, incisivo, o gritão Ferrabraz, um sindicalista de granada no bolso do pijama.
-         Que elite, que nada! O assunto é sério! Tem gente morrendo e matando de fome – ponderou Afonsinho, tentando reconduzir a conversa para um plano mais razoável.
-         Ultimamente, tenho visto gente matando por um par de tênis, mas não por um prato de comida – atacou forte o ex-sargento Caçamba.
-         Isso é coisa de televisão, a realidade é bem outra – sustentou Afonsinho.
-         Olha, vou dizer uma coisa pra vocês: Vai chegar o dia em que metade da população não vai dormir de fome e a outra metade não vai dormir de medo dos que estão com fome.
-         Fome coisa nenhuma! Procura alguém para trabalhar, pra ver se acha!
-         Emprego todo o mundo quer, mas trabalho que é bom... Essa gente está habituada a pedir porque tem gente que está habituada a dar – perdeu a paciência Mofão.
-         A coisa não é bem assim – interferiu Silvério. Tem gente passando necessidade mesmo. Irmãos nossos. Pais com muitos filhos para criar...
-         Aí é que está o problema. Essa gente se multiplica como rato.Desculpa, Rato, nada a ver! Não podem ter um filho e têm dez. E ninguém faz nada?
-         A natureza fala e a gente cala – filosofou Joaquim, bebericando sua poção.
-         Temos que dar a maior força a esses Comitês de combate à miséria que estão se formando em todo País. Esse é o resgate da cidadania – discursou Afonsinho.
-         Não me pise no ponche, meu jovem. Por favor não entre nessa seara – recomendou, com educação, Dr. Camalhoso.
-         Está certo, está certo. Mas vamos à luta. Temos que fazer alguma coisa.
-         Se não tiver voto e eleição no meio, pode contar comigo – falou o risonho Quiri, sempre disposto a entregar sua camisa ao próximo.
Os outros assentiram com o silêncio. Com o mesmo silêncio é possível que tivessem dito que não se oporiam a uma ampla campanha de benemerência.
Enquanto a madrugada vai aceitando ser docemente roída pelos grilos, Rato vai discretamente esfregando seu guardanapo, para dizer, com seus olhos de anjo caído, que a sessão acabou e que amanhã tem mais, se Deus quiser e o diabo não impedir.

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