terça-feira, 17 de maio de 2011

PARA ESQUECER

A noite era chuvosa e fria e as horas soltas dançavam, tímidas, no pêndulo do velho relógio. Parece que, ao mundo, naquele momento, não estava outro remédio senão aninhar-se no poncho e descansar.
Descansar? A campainha tocou forte. Do outro lado da porta, um tipo de fisionomia mansa, coroado por roto chapéu, vestindo bombachas, um pé calçado e outro não, no pescoço, um lenço outrora vermelho fazia o alto relevo tosco daquela escuridão sem par. O hálito era de cachaça ordinária.
Ensaiou qualquer coisa parecida com “boa noite” que, na verdade, era uma breve e lacônica consideração, quase filosófica, sobre o rabo da minhoca. Perguntei o que desejava. Quase na diagonal, visivelmente grato, suspirou com dignidade e atacou:
-         Patrão, preciso de uns troco!
-         Ah, já sei, é para a cachaça, não é?... – perguntei, afirmando com censura.
-         Não senhô – é pra comprá vela – duas pra o velório – da véia minha mãe... – falou e disse, com tristeza bafejante.
-         Então, não é para o vício?
-         Não senhô! Deus que me livre...
-         Espera aí que eu já volto! – fui lá e busquei duas velas. Pronto aqui estão...
-         Ué, o senhô tinha?... – comentou, sem esconder a decepção.
-         Pois é, a gente sempre tem, com essas faltas de luz...
-         Pôs lê agradeço. Deus lê dê em dobro. Passe bem... – e saiu, daquele jeito, sumindo no breu da noite chuvosa e fria.
Voltei para o meu canto pensando no gaúcho, na vida, na chuva, na noite, no frio... Às vezes só bebendo para entender (ou não entender) o encantamento dessas grandezas que fazem tão frágil nosso existir...
Quando quase me consumia no remorso desse pensar, tocou novamente a campainha. Abri a porta e lá estava o gaúcho, mais molhado que antes, com as velas na mão e no rosto uma fisionomia matreira.
-         Patrão, desculpe lê estrová – nóis se enganemo. A véia não morreu – tá mais viva que saracura no banhado. Vou lê entregá as vela, sem servintia...
-         Muito bem – se não precisa delas... – e fui fechando a porta. Mas o gaúcho taita, como quem conhece os atalhos da comunicação humana, convidou de lá:
-         Amigo véio, bamo tomá uns trago?...
Reabri a porta e o coração:
-         Então era canha mesmo que o senhor queria?
-         É pra afogá o susto... – disse, com voz mansa, do alto de sua simplicidade...
Fiz o gaúcho entrar e bebi com ele até afogar sustos, idéias, razões e considerações. No meio desse insólito, fico pensando: - será que o povo brasileiro não anda por aí pedindo velas quando, no fundo, quer é beber uma cachacinha amiga, em paz?
Será que nossa gente não anda inventando a morte da mãe (pátria) só pra sensibilizar quem lhe dá uns trocados para o trago?
Que trago? Certamente aquele gole para esquecer a miséria que jamais abandona os viciados na esperança... E no amor por este chão.
Será?...

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