terça-feira, 17 de maio de 2011

O SEQÜESTRO

Durante anos, bateu de porta em porta e só recebeu “nãos”.
As editoras, uma a uma, gentilmente recusavam o calhamaço de “contos e crônicas” de Boaventura, um escritor semi-surgente que só queria mostrar ao mundo a fibra e o sentimento de suas histórias, tão simples quanto originais.
Dia a dia, via esvair-se seu sonho literário, obra e graça de uma vocação quase natural que inquietava sua alma e circuitava seus neurônios.
Desde menino gostava de escrever...
Certa vez, estimulado por dona Verônica, a professora primária de estimação, escreveu bela redação sobre as “férias no sítio do vovô”, recebendo diversos elogios, coroados por estalados beijos, lambuzados de batom. Com as faces vermelhas de emoção e... batom, resolveu que, um dia, seria grande escritor, conhecido de norte a sul, lido por todos, para bem geral e sagração especial da literatura. Um dia...
Tinha lindas histórias para contentar todos os gostos.Escrevia como falava e falava como vivia. Vivia a espera de uma oportunidade generosa. Mas essa não chegava e não chegava... Queria apenas um livrinho simples – coisa singela – que ao menos chegasse às tendas das feiras para agradar o povo e, se possível, acampar na praça dos críticos.
Precisava saber se suas histórias valiam ou não valiam... Escrever para não ser lido era tanto quanto apenas beijar o vento ou fazer cócegas em si mesmo – não tem graça... nem arte.
Os anos passavam e sua missão não se cumpria. Na falta, então, de ocupação mais interessante decidiu credenciar seu velho Fuca no contexto dos táxis nossos de cada esquina.
Escritor por vocação e taxista por ocupação circunstancial, sentia um vazio dentro do peito, sabendo que isso era tudo que queria na vida.
Um dia seria lido! Um dia...
De tanto circular, certa feita bateu de cheio no para-choque de seu próprio destino. Transitando os restos vespertinos de um sábado solto, parou para recolher um sério passageiro, bem ali no cruzamento daquela com aquela outra.
-         Para onde vamos, doutor?
-         Para a Biblioteca Pública.
-         Será que está aberta?
-         Claro. Estamos lançando um livro hoje lá.
-         O senhor é escritor?
-         Não. Eu não escrevo – apenas edito.
-         Ah, o senhor é um editor?...
-         Sou.
-         Sabe? – eu gosto de escrever, não me leve a mal...
-         Que bom...
-         Escrevo desde menino...
-         Que ótimo!
-         Sua editora não gosta de novos talentos?
-         Gostamos. Mas nem sempre se faz o que se gosta...
-         Ah, pois é...
E assim morria, inapelavelmente, na secura do editor, a conversa quase esperançosa para Boaventura.
Sinais fechados, curvas para a direita, outras para a esquerda, tráfego trancado. Boa manobrava a contravenção de mais um “não” na via da vida.
Foi então, que uma inspiração extra buzinou em seus ouvidos.
Ágil, guinou o Fuca para a esquerda e tocou.
-         Para onde vamos? – questionou o assustado editor.
-         Para a Biblioteca, doutor.
-         Mas, por aqui...?
-         É um atalho. Pode confiar...
Andaram por altos e baixos até que o carro afogou.
-         O que houve?
-         Afogou, doutor.
-         E agora, o que se faz? Já estou queimado no horário...
-         Agora a gente desafoga e logo estaremos lá. Fique calmo...
-         Calmo? O quê vou dizer? Estão todos só me esperando...
-         Fique tranqüilo – eu conheço bem os macetes deste Fuquinha...
-         O senhor quer ajuda?...
-         Não, não se incomode – já, já saímos daqui.
-         O senhor tem certeza de que não quer uma mãozinha?
-         Bem, já que o doutor insiste, segure e chave de fenda enquanto eu dou a partida.
-         Pronto.
-         Lá vai...
-         Ih, pode parar! Saltou óleo na minha roupa...
-         Puxa, que desastre! Fique tranqüilo – tudo se conserta...
-         Mas como vou chegar assim na Biblioteca?...
-         Não vai. A gente dá um jeito.
-         Que jeito?...
-         Venha comigo.
E entraram numa casa humilde bem ali na frente. Lá dentro a algazarra da criançada era de ensurdecer. No canto da sala, confinadas junto à televisão, diversas senhoras falavam ao mesmo tempo enquanto bocavam formidáveis pedaços de bolo, farto em merengue.
-         Vá passando, doutor. Não repare – a casa é modesta mas o coração é grande...
-         Onde estamos?
-         Na minha casa – veja que coincidência...
-         Coincidência?...
-         Carlinda, este é o doutor editor.
-         Muito prazer.
-         Prazer, Dr. Rivaldo...
-         Por favor sente...
-         Obrigado, senhora, mas não posso – tenho um compromisso agora e já estou atrasado...
-         É isso mesmo, Carlinda, o doutor tem pressa. Entramos aqui só para ele tirar essa mancha de óleo no terno.
-         É pra já – deixe comigo. De manchas de óleo eu entendo. Só que...
-         Só que o quê?...
-         Desculpe, mas o senhor terá que tirar as calças...
-         Tirar?...
-         Isso. É coisa rápida. Fique à vontade...
-         Aqui?...
-         Passe para o quarto, doutor. Fique calmo que tudo se resolverá.
E assim aconteceu. Lá dentro, em trajes menores, o poderoso Dr. Rivaldo tentava controlar os nervos.
-         Olha o bolinho...
-         O que é isso?
-         Um pedacinho do bolo de aniversário da minha filha Dulcinéia – está fazendo quatro aninhos... Coma, doutor – fique tranqüilo...
-         Mas não precisava...
-         Vai uma guaranazinha? Heim? Com ou sem?
-         Com ou sem o quê?
-         Um pingadinho de uns 12 anos que o compadre Alcebíades me trouxe lá do Paraguai.
-         Com, e seja o que Deus quiser...
-         Assim se fala, Dr. Rivaldo!
-         “Parabéns a você, nesta data querida...”
-         Não leve a mal – é a hora das velinhas. Criança não perdoa – tem que ter velinhas...
-         É verdade – meus filhos também não abrem mão das velinhas.
-         O senhor tem filhos, doutor?
-         Tenho. Dois. São bem travessos.
-         Mas são uns amores, não é Dr. Rivaldo?
-         Quando estão dormindo...!
-         E sua esposa, gosta de crianças?
-         Sim e não. Ela é meio braba.
-         Não diga...!
-         Saindo uma calça novinha sem manchas...
-         Saiu mesmo. Mas está molhada...
-         É, mas seca logo. Enquanto isso, a torta de galinha – está uma delícia...
E assim corriam as horas e nada do Dr. Rivaldo ver-se livre daquele “inocente” e cordial cativeiro para, então, comparecer à Biblioteca para o lançamento de mais um livro de sua progressiva editora.
-         Mais um guaranazinho?
-         É, mais um! Duplo!... – disse Dr. Rivaldo, jogando a toalha.
Pelo andar dos acontecimentos passaria aquela noite e mais outra e as coisas, mesmo que andassem, não saíam do lugar. Intimamente, deu-se conta de que estava solenemente seqüestrado. E não podia reagir não era caso de polícia.
Era preciso inteligência e arte para sair da arapuca.
-         Boaventura – chegue mais perto – qual o preço do meu resgate?
-         O que é isso doutor? Resgate?
-         Nós dois sabemos do que estou falando...
-         Bem, já que o doutor insiste...
-         Diga sem medo – eu pago.
-         Livros...
-         Como?
-         Isso mesmo – publique meus livros.
-         Tá fechado. Mas tem uma condição...
-         Qual é doutor?
-         Que tu escrevas esta história na primeira página do teu livro. Só assim poderei explicar aos convidados e à minha mulher o que aconteceu nesta noite. Feito?
Feito. Vai mais uma tortinha?...

Nenhum comentário: