terça-feira, 17 de maio de 2011

O BAIANO

Conta-se que, um dia, caiu por aqui um bom baiano com família e tudo. Transferido por força de suas obrigações profissionais, veio beber a água do Santa Maria. Homem alegre, comunicativo, logo fez amizades e muitos conhecidos. Sem papas na língua, sincero, ia dizendo, aos quatro ventos, que a cidade era boa, a gente hospitaleira, o ar agradável, mas a comida sem gosto. Faltava pimenta na gororoba. Ah, que saudade da Bahia...
Como era possível sobreviver num lugar onde a comida não ligava a boca à memória? Como passar os dias (longos dias de sua transferência), sem as benesses da pimenta amiga? Por pura hospitalidade, era, seguidamente, convidado a almoçar um carreteiro ou jantar um espinhaço de ovelha. De volta em casa, comentava com a mulher:
-         O ambiente estava ótimo mas a comida era bem sem graça. E antes de enfiar os chinelos ainda completava: - Não sei como esta gente boa pode viver sem pimenta...
Conversa vai, conversa vem, essa história parou, um dia, nos ouvidos do tio Zeferino, homem sutil, inteligente e um dos esteios mestres da sociedade pedritense. 
Tio Zéfe rebolou a bengala e arquitetou seu plano. Como quem não quer nada, mandou matar um porco. Na beira da lida, determinou que se fizesse um punhado de lingüiças grossas e gordas. Fiscalizou o trabalho de perto até o fim.
Nas duas últimas voltas da tripa recomendou o preparo especial, mandou que se fizesse pimenta com lingüiça. Carregou na porção. Malagueta e outras foram prensadas num pouco de carne. A sobra da pimenta foi habilmente, colocada em conserva, nadando em azeite.
Com ar estudadamente distraído, aproximou-se do tal baiano e conseguiu trazê-lo para a sombra de sua casa, com simpatia e carisma. Aos poucos foi amansando o forasteiro, até convidá-lo para um jantar informal com a família.
Na noite combinada chegou o alegre baiano com a consorte e tio Zéfe foi logo oferecendo um quebra-gelo ou limpa-poeira. Cachacinha pra cá, cachacinha pra lá – foi botando lenha seca na fome do nordestino. Depois de alguma conversa e risos, convidou as visitas para passarem à sala de jantar. Na ponta da mesa, como um patriarca, tio Zéfe encarregou-se da partilha do prato principal. Ao visitante e esposa serviu generosos pedaços  da lingüiça brava. Justo aquela que ele, engenhosamente, tinha mandado carregar na pimenta. Aos filhos, à esposa  e alguns achegos serviu da outra ponta, com tempero normal. Serviu-se e seu gesto de levar um naco à boca deu a partida na cerimônia de mastigação. Mal tinha dado duas mastigadas, virou-se para a esposa, e comentou em tom repreensivo:
-         Onde estavas com a cabeça, quando encheste esta lingüiça? Enqueceste de botar pimenta?...
O baiano, que já engolira seu primeiro pedaço, amargava em heróico silêncio, o exagero da malagueta. Mas tio Zéfe, dando prosseguimento à cena combinada, continuou em sua teatral reprovação:
-         Mulher, esqueceste da pimenta, justo hoje que convidamos para jantar este nosso querido amigo, que vem da Meca do bom tempero... o senhor, por favor, desculpe a imperdoável falha da minha velha – nem sei o que dizer...
O convidado, atônito, meio sem jeito, já em processo de transpiração abundante, disse, sumidamente:
-         Não se preocupe, isso acontece – está muito bom este enchido...
Mas tio Zeferino ainda tinha uma última carta na manga, para concluir seu jogo:
-         Se o senhor me permite, pra remendar esse esquecimento, deixe que eu lhe sirva um pouco dessa pimenta que preparei. E antes que o pobre baiano esboçasse qualquer reação, pois já queimava em brasa, tio Zéfe derramou, fartamente mais pimenta no prato do infeliz.
Como que por milagre o convidado conseguiu sobreviver, com certa dignidade, à aprovação do jantar. O estrago tinha sido bem grande – é verdade – pois o nordestino não conseguia mais manter a lógica da conversa. Quando tio Zeferino comentou sobre a carestia dos tempos que correm, ouviu o baiano balbuciar qualquer coisa relativa a necessidade de eucaristia para os que morrem. Agradecido pela gentileza do jantar, o baiano ainda encontrou forças para levantar da cadeira, fazer-se entender pela mulher, e começar com as formalidades da despedida. Já na porta, com olhar um tanto desvairado, misturava agradecimentos, boa-noite e parabéns. Bem na saída o anfitrião lhe pôs nas mãos um pacote bem atado:
-         Esta é para comer em casa, junto com a patroa. O baiano segurou o inusitado presente como se estivesse com uma bomba nas mãos.
Agradeceu e tratou de enveredar para o caminho de casa antes que algo mais acontecesse. 
Finalmente, no aconchego do lar, ao abrir a porta da frente, viu passar uma barata. A mulher fez cara de asco mas ele nem para isso tinha forças.
-         Que bicho nojento – disse a esposa, torcendo o nariz.
-         Hum! Resmungou o coitado, com problema mais sério para resolver.
-         Dizem que bom mesmo para afastar esses bichos é pimenta do reino...
Não me fala nisso!... Chega de pimenta! 

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