terça-feira, 17 de maio de 2011

O PONTO ROUCO

Naquele inverno, de tantos desencontros do clima – numa hora, frio de rachar, na outra, calor temporão – sobreveio uma virose maluca que botou metade da população na cama.
O circo-teatro Biduca, que ambulava, no mínimo, seis meses em cada paróquia, quase fechou em razão do inusitado. As baixas no setor artístico foram tamanhas, que foi preciso encenar a peça “Bonequinha de Luxo” apenas com homens. Ficou estranho, mas o espetáculo não podia parar... E o pior é que a violenta gripe atacara a garganta de uns e de outros. Calamidade geral!...   
Lembro de um sábado – casa cheia – quando a apresentação do drama “O Direito de Nascer” teve lá seus graves percalços. O “ponto”, atingido em cheio pela gripe, ganhou uma formidável e indisfarçável rouquidão. Sua voz, de muletas, chegava trôpega e fanhosa, ao ouvido dos atores. Estes, maior parte também picada pelo vírus, estavam surdos como porta de masmorra. Era uma batalha cruel de sons confusos e audições duvidosas. As mãos em concha nas orelhas, emprestavam um brilho cômico à coreografia geral. O resfriado comprometia a arte!...
De um lado o “ponto”, com voz sumida e de outro, atores com ouvido precário, compunham o quadro de difícil solução. O público compreensivo, que já havia decorado a peça (essa era a 15ª apresentação na temporada), dava uma ajudadinha, ditando as falas. Instalou-se assim um ambiente interativo de franca cooperação entre platéia e artistas, digno das melhores idealizações sócio-operativas. Isso mesmo, na deficiência, visível e audível, do “ponto”, entrava o público, soprando os diálogos, empurrando o espetáculo para sua conclusão satisfatória e não menos apoteótica.
Antes de continuar o relato, é justo que se explique o que vinha a ser o “ponto” no teatro, para que as gerações de agora não fiquem órfãs dessa informação. “Ponto” era aquela figura fundamental que jazia, estrategicamente escondida do público, sob o tablado, de frente para os atores, ditando as falas da peça. Sua locução, de preferência inaudível para o público e necessariamente audível para os artistas, era chave para o bom e perfeito andamento do espetáculo.
Mas, naquele inverno louco, a ordem dos fatores quase altera o resultado.
A gripe comprometera a técnica convencional da apresentação teatral. Por isso, o público, solidário e sensível, fazia sua parte ajudando no desenrolar do evento, ditando falas, soprando diálogos e aplaudindo, com sincero entusiasmo, o contexto geral. Tudo ia bem, não fora um pequeno acidente que se tornou grande no desenvolvimento dessa história gripal.
No meio das soprações, de repente, veio lá do fundo a vigorosa e convicta mensagem despaletada de um incauto, imerso na massa e no álcool. Aos quatro ventos, gritou “vivas ao Dr. Getúlio”... O ator da vez, já habituado ao esquema improvisado, repetiu o dito, com ênfase e arte, distraidamente. A provocativa citação não ficou sem resposta. Também, lá do fundo, alguém contraponteou dando “vivas a Lacerda”. A confusão então generalizou-se!
De pronto, surgiram, como que por encanto, lenços vermelhos, brancos, azuis e verdes. “Caudilho” – diziam uns. “Reacionário” – respondiam outros. “É o pai dos pobres”, dizia um lado. “É a mãe das negociatas”, dizia o outro. “Protetor dos trabalhadores”, gritava a ala da esquerda. “Padrinho do Gregório Fortunato”, respondia a ala da direita. O confronto pelas vias de fato, era iminente.
Albertinho Limonta, personagem central da novela, querendo salvar a cena, caiu, ruidosamente de joelhos, levando ao rosto seu cachecol de seda pura. O público, então, susteve-se no ar, esperando, curioso, a conclusão da manobra.
Albertinho ergueu-se, súbito, mirou o povo e espirrou sonoramente. “Saúde!”, recomendou o “ponto”, com voz forte, recomposto milagrosamente pelo susto.
“Salud y plata, y una buena mulata” – completou o bêbado, autor da confusão. Aplausos gerais, reforçados por toses, pigarros, espirros, chiados e risadas... roucas, mas sinceras.
E assim, escreveu-se mais uma página da história teatral de nossa gente, que sempre soube vencer as gripes, mas que nunca deixou de padecer as recidivas da revolução política... O espetáculo não pode parar!...

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