terça-feira, 17 de maio de 2011

HERMES

Hermes é um negro velho desses de estimação. Não tem idade certa e não se sabe bem onde nasceu. Fiel e trabalhador, os olhos e o garrão não desmentem. Bebe uma cachacinha só por prazer e tradição. No bolso, a fumeira traz muitos por-fazer... e pita com gosto, desafiando, na fumaça, antiga e preguiçosa, o espaço, o tempo e as filosofias complicadas dos homens de gravata. Hermes não tem pressa de viver, pois sabe que a morte é certa e a cabeça está sempre entre as orelhas. Conhece as vontades da terra e mexe nela com carinho e zelo. Há como que um pacto surdo e secreto entre eles; tudo dá certo e as plantas nascem e crescem viçosas de fazer inveja. Hermes não tem grandes conhecimentos sobre a natureza, o mundo e a vida; ele próprio é a natureza espontânea, mansa e harmônica, com dois braços, duas pernas, voz a bombacha. Vivia no campo e hoje mora na cidade.
Um dia desses, Hermes foi ao doutor. Andava muito ansiado com aquela dor no peito, que às vezes respondia mais forte nas costas. Aquele mau dormir, a pressão na cabeça, dor no vazio, soluço, tremer de frio, um inferno. Era a primeira vez que consultava, pois, até ali, chá e benzedura tinham sido santos remédios. Mas a queixa de fundo, a verdadeira, o chão do poço, era um vizinho má conduta, perigoso, homem de má idéia que andava perseguindo o pobre do Hermes. Onde quer que ele fosse, onde quer que ele se sentasse, lá estava o dito cujo, espiando, ameaçando à distância, rogando praga, pondo mau olhado. Era perseguição sim, ele sabia muito bem. Só não via quem não queria... Mas por que o vizinho tinha pegado no pé  dele? Ah! Para lhe apunhalar pelas costas, para lhe roubar o sossego, para lhe tirar a paz. E a perseguição era cada vez mais clara, mais declarada. A intenção dava para ser entendida até por uma criança...
Todo o mundo se preocupou com a história. Logo se foi tirar a limpo o que estava acontecendo. Sabe como é, nesses dias de hoje em que, sem motivo algum, as pessoas começam a fazer coisas malucas, a violência e a agressividade não pagam imposto, seria melhor pedir à polícia para investigar o caso.
A polícia correu ruas, entrou por becos e saiu por logradouros, perguntou, indagou, observou, policiou e nada. Transitou na vizinhança de Hermes e não suspeitou de ninguém. Nem o compadre Lifonso que, verdade seja dita, há tempos andava meio esquisito, indiferente com a vida e com os amigos, tinha condições de perseguir alguém. Ao contrário, todos gostavam muito de Hermes e, naquela vida, mal havia tempo para fugir da perseguição da fome e do frio...
Mas a polícia não descansou – voltou à carga, para não ser acusada, mais uma vez, de imprevidente. Inquiriu o queixoso, sobre um possível desafeto; alguém que não gostasse dele por algo que, por ventura, tivesse feito, dito ou pensado. Nada. Imaginou-se um louco, um desvairado que, como um meteorito que cai ao acaso, tivesse igualmente, ao saber do imprevisto e sem razão alguma, caído sobre o pobre Hermes, com toda a sua fúria. Nem isso ocorria. Mas a queixa continuava latejando e latejando...
Dois dias depois da consulta, Hermes foi baixado com farta crise nervosa, de causas ainda incertas. Um tal de Dr. Sobral assoprou que se tratava de paranóia. Ou isto ou aquilo, foi um baque duro para todos. Dona Carola disse, gravemente, que aquilo era porque já fazia dois domingos que Hermes não ia à missa. Alguém disse que era a erva mate que estava contaminada, e houve gente que culpou aquele vento norte irritante, mole, meio doido...
Fez-se tudo o que era possível: bom quarto e atenção, remédios e sono reparador, comida leve e um cigarrinho feito, muito carinho e compreensão. Foram alguns dias de cuidados minuciosos. Depois de muitos tratos e rezas, finalmente, Hermes começou a melhorar. Já dormia melhor, comia bem e não repetia mais a história de perseguição. Aquela terrível pressão na cabeça, tinha passado como chuva de verão. Enfim Hermes tinha sarado. O doutor veio para dar alta:
-         Como vai, Hermes?
-         Bem melhor, sim senhor.
-         E a dor no peito?
-         Já nem sinto mais, não senhor.
-         Está bem?
            To, sim senhor. Melhorei bem com aqueles remédios que o senhor me deu, e depois que aquele homem parou de me perseguir.

Nenhum comentário: