terça-feira, 17 de maio de 2011

O COMETA

Dona Laurinha tinha tudo para ser escalada na equipe titular de histeria.
O último ataque, com direito a todos os chiliques que a medicina conhece, teve como causa objetiva os desarranjos de seu mimado gato angorá. Dr. Paranhos, médico experiente e dedicado, já sabia essa lição de cor.
Quando chamavam para atender dona Laurinha, Dr. Paranhos prescrevia os procedimentos de praxe. Depois do surto – o olho do furacão – sobrevinha uma longa fase de lucidez e atividade produtiva. De ataque em ataque, sua estimada cliente is galgando os tortuosos degraus da vida, rumo a uma longevidade digna do livro do recordes. “Mulher gemida – mulher para toda vida” – esse é um adágio que muito sabe da verdade.
As histórias de dona Laurinha tinham um roteiro conhecido. Primeiro era o desmaio, com direito a tremuras e outros quetais. Quando voltava a si, dava início à sessão de torrentes lamentações. Falava no falecido – ressaltando as imensas e incomparáveis qualidades do dito cujo. Depois, queixava-se do mundo e dos tempos loucos dessa modernidade sem critérios. Nesse ato engasgava-se com ênfase e pranteava, ruidosamente, sem derramar lágrima sequer.
Quando a verborragia alcançava os píncaros, seguia-se um novo espetáculo de coreográfico desmaio. A criadagem, atenta, corria na volta. A parentada azulava uma sofreguidão sem par. Em cada crise dona Laurinha ia pondo sua mossa no tempo, sem medo e risco de envelhecer.
Num domingo avulso, cheio de sol e preguiça, Dr. Paranhos foi chamado, às pressas, para atender sua pitoresca paciente amiga. O quadro era o de sempre. Dr. Paranhos tranqüilizou-se e acalmou os circunstantes. Quando refez-se do primeiro desmaio, dona Laurinha virou-se para o médico e disse, com visível e contagiante alegria adolescente nos olhos:
-         Doutor, estou feliz! Agora Deus já pode me levar. O que vi nesta madrugada é a beleza suprema da natureza. Estou satisfeita, não preciso ver mais nada. Dr. Paranhos, eu vi o cometa... Que maravilha!
Dr. Paranhos, então, preocupou-se – isso não estava no script de dona Laurinha. A doença agravara-se de repente. Alucinações não estavam no programa...
-         Doutor, não posso esquecer aquela cauda luminosa!...
-         Êpa! A coisa é séria. Isso é delírio galopante...
-         Reparando bem, doutor, dava para ver a mão de Deus regendo um imenso coral de anjos, do meio daquela luminosidade indescritível!...
-         Ih! O caso é grave mesmo. Minha paciente agora vê cometas, anjos e coisa e tal. Acho que serei obrigado a reforçar a química do tratamento. Vou experimentar a novidade que aquele viajante deixou ontem no consultório, raciocinava o diletante Dr. Paranhos, um verdadeiro cientista, bom clínico e reconhecidamente desligado.
A bem da verdade, diga-se que Dr. Paranhos era tão dedicado quanto distraído. Excessivamente concentrado, diziam todos, com carinho. Seguidamente tentava meter sua chave em porta de carro alheio.
Não raro comentava assuntos políticos e sociais rigorosamente vencidos. Era comum ver o admirável soldado de Hipócrates, às horas tantas, no hospital, espreitando o sono reparador de um cliente seu. Sua vida médica era um autêntico e genuíno sacerdócio. Um homem raro, sem dúvida.
-         Dona Laurinha vendo cometas! – só me faltava essa ...! O caso é gravíssimo.
Saiu dali decidido a encontrar uma solução terapêutica para o problema. E que problema! – alucinações, delírios...
Quando entrava em casa topou com um amigo da redondeza:
-         E aí, doutor, viu o cometa?...
-         Que cometa?...
-         Ué, doutor, não me diga que não viu, todo o mundo viu!...
-         Como assim?...
-         Pois esta noite passou um cometa dos bem grandes. Parecia uma bola de fogo deixando uma cola de luz que mais parecia um disco voador!...
-         É mesmo?...
-         É, o senhor não viu?
-         Ah, o cometa! Claro que sim... claro que sim...

Um comentário:

Anônimo disse...

muiiito bom, ilustra a vida de um clinico!