terça-feira, 17 de maio de 2011

PELOS OLHOS DA VACA

“Eu sou a vaca!
Meu dono me chama de Rosimeri. Eu atendo e aceito, mais para satisfazê-lo, pois sei que os homens necessitam colocar nomes em tudo. Nós, os bovinos, que temos os sentidos mais apurados, não precisamos desse expediente. Jamais confundimos a vaca com a vaca. Não existem duas iguais. Nem mesmo os homens são todos iguais...
Eu disse “meu dono” – ah, essa é outra concessão que faço, sabe como é (?), o homem precisa pensar que é dono das coisas. Com esse pensar ele manobra as barafundas de sua enlouquecida cabeça. Cá entre nós, a cabeça do homem é complicadíssima... Ele pensa que é o único que entende o mundo e a vida. Tem a pretensão de achar que é o único que sabe decifrar a linguagem da natureza e por isso se auto-denomina animal racional, ser pensante, rei e outros títulos pomposos. Fico bem quieta – não sou desmancha prazeres. Só observo, a distância. O pobre faz um enorme esforço para compreender o que nós, vacas, estamos caducas de saber.
Ele acha, por exemplo, que somos muito indefesas e faz das tripas coração para nos proteger. Na verdade ele quer proteger seu negócio. Sinceridade é bom e eu gosto. Nós aceitamos a proteção, passivamente, pois, no fundo, sabemos que o infeliz quer é compensar sua própria fragilidade. E como o homem é frágil!... Só de pensar nisso fico comovida. Às vezes me dá vontade de pegá-lo, mimá-lo, acariciá-lo. Só não faço isso porque, de fato, confundiria sua fraca cabeça. Já imaginaram que escândalo seria uma vaca com seu dono no colo?... Até que seria engraçado. Ah, esse é outro capítulo estranho nessa história. O homem ri de coisas absolutamente sem graça. Ri de si mesmo, pode?... E não sabe fazer isso em silêncio, como nós. Aí é que está o bom da graça – morrer de rir sem dar a perceber – é bem mais divertido e não esquenta desconfiômetro de ninguém.
Mas, voltando à vaca fria, como costuma dizer nosso herói (nunca dominei o sentido exato dessa expressão, e nem vale a pena), os homens têm tanta necessidade de posse que são capazes de matar ou morrer por um pedaço de chão. Cada um quer ter um retalho maior do vestido da mãe natureza e, no entanto, vi poucos merecendo isso e nenhum levar consigo o seu pedaço, quando morre e vira pasto. Mas a vontade é tanta de levar um pedaço desse pano, que ficam imaginando lugares distantes e vidas permanentes. Lá bem longe, onde o focinho brigou com a tromba. Não percebem que toda a existência cabe aqui, onde pisamos e respiramos, onde pastamos e bebemos, onde nascemos e morremos. Tudo o que nos cerca é tão bonito, grande e misterioso, que não se precisa imaginar nada além disso para ser feliz. Mas esse é outro problema do homem – é tremendamente insatisfeito. Sempre quer o que está lá e despreza o que está aqui. Já cansei de ver – e desmaio de tanto rir – homens pescando.
O que está deste lado do açude joga a linha para lá. O que está do outro lado joga a linha pra cá. Perceberam o absurdo?... Os peixes, eu sei, estão em todo o açude, só os homens não enxergam isso.
Dia desses estava eu quieta no meu canto, brigando com minhas moscas e ouvi um alarido na casa principal. Eram duas comadres falando muito alto e chamando uma à outra de “vaca”. Diziam – “Sua vaca”! Não sei se estavam se desaforando ou se elogiando. Nem quero saber. A raça humana às vezes diz tanta coisa sem sentido que nem vale a pena prestar atenção. Salvo melhor juízo, penso que estavam se elogiando. Mas como gritavam... Acho que eram bem surdas, as comadres.
Por falar em paradoxos, fiquei um tanto chocada com o “meu dono” que, alegre e satisfeito, saiu por aí dizendo que ia colocar uma vaca no carro para poder carregar mais bugigangas. Esse é outro problema – os homens não sabem dar um passo sem uma porção de malas, pesadíssimas, por sinal. Quanto à “vaca” no carro, prefiro não aprofundar o assunto para não perder o bom humor.
Pensando bem, acho que sou importante para o homem. O segundo leite que ele dá a seus filhos é o meu. Pelo menos até pouco tempo era. Depois que ele entrou nessa neurose de higiene e outros fricotes, só acredita em latas e saquinhos. Me contou a Isaura que até os pensamentos humanos já estão sendo embalados em latinhas e caixinhas. Tudo muito limpo e (desculpem o palavrão) “pasteurizado”. Desse jeito a coisa vai mal. Eu não falo nada, Deus me livre, cala-te-boca! Não estou aqui para complicar a vida. Para isso bastam os homens. Eu estou aqui, mansamente, ruminando e ruminando, enquanto essa lua não passa, essa porteira não abre e essa vida não morre...”

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